Akasha - Capítulo 1

    Seis meses após o término do Jogo Sagrado, Douglas acordou.

    — Vamos começar mais um dia! — Disse ele, animado.

    Enquanto escovava os dentes, Douglas não parava de prestar atenção em seu próprio rosto: Traços finos, pele levemente amorenada e cabelo médio liso. Também reparou bastante em seus olhos: Eram como os de qualquer ocidental.

    Douglas fazia isso todo dia, ele ainda não havia processado a ideia de que era filho da deusa japonesa Izanami.

    “A encarnação humana dela deve ter tido uma aparência mais comum no Brasil” pensou o rapaz.

    Douglas ligou a TV e foi preparar o café-da-manhã. O noticiário matinal falava alguma coisa sobre gado desaparecendo das fazendas e estranhas luzes no céu da noite anterior, mas o rapaz não deu muita atenção.

    “Tô morrendo de fome” Pensou enquanto sentia o delicioso cheiro dos ovos mexidos que revirava na frigideira.

    Terminado, Douglas sentou na mesa da cozinha pra comer seu desjejum. Os ovos estavam meio tostados porque ele ainda não havia encontrado o ponto certo, e era melhor deixar por mais tempo no fogo do que correr o risco de pegar salmonela.

    “O Alexandre com certeza saberia fazer isso direito”, pensou enquanto tirava fios de cabelo que acabam entrando em sua boca.

    Terminada sua refeição, Douglas tirou um tempo pra refletir. Aquele apartamento que a família de Lúcia conseguiu pra ele era modesto, mas só de ter janelas pra luz do sol entrar já o tornava muito melhor que o dormitório da Kegareshi.

    A pequena cozinha ainda cheirava a ovos e os sons da TV de segunda mão já soavam como ruído branco.

    Douglas estava pensando no ser que ele descobriu ser sua mãe: Izanami. Por que ela assumiu a forma de uma mulher brasileira e se casou com Igor? As vezes Douglas sonhava que estava conversando com ela no Yomi, o que o fazia se sentir muito bem ao acordar, como se tivesse recebido uma injeção de ânimo.

    Uma coisa que ele se lembrava, porém, era que a alma de Igor, bem como dos pais de Marcos e Maurício, estavam sob a posse dos Alkhez. Definitivamente não era algo pra se comemorar.

    O toque do celular de Douglas interrompeu seus pensamentos.

    Era Lúcia.

    — Preciso de você aqui o mais rápido possível. — Disse a nikkei.

    — Não trabalho hoje, esqueceu? — Douglas se referia ao emprego que conseguiu na empresa da família da japonesa.

    — Me refiro à Kegareshi.

    — …


*


    — E então, o que houve? — Perguntou Douglas, acabando de chegar no prédio.

    A Kegareshi era a organização que Lúcia havia criado para combater os monstros conhecidos como “Hasturs”. Além dela, estavam reunidos na sala principal outros três membros: Douglas, Ana e Marcos. Três herois que lutaram bravamente durante o Jogo Sagrado.

    — O Alexandre não pôde vir? — Perguntou Douglas, se referindo ao amigo que havia voltado pra França.

    — Dessa vez isso não tem a ver com Hasturs. — explicou Lúcia. Após pensar um pouco, ela adicionou: — Pelo menos eu acredito que não.

    — Não dava pra usar o teletransporte nele? — Perguntou Ana. — Aliás, não dava pra usar na gente tudo? Combustível tá caro.

    — Eu já disse, isso não tem a ver com Hasturs. — Lúcia controlava o tom de sua voz para não soar muito impaciente. — Além disso, o teletransporte só funciona dentro da cidade e ainda por cima com uso limitado: O pessoal da área automotiva fez lobby pra impedir que eu tocasse meu projeto adiante.

    Aquilo acendeu uma chama de fúria na alma Ana.

    Malditos porcos. Resmungou a punk.

    Acho que já tá na hora da gente ir pro que interessa, né? Comentou Marcos, abocanhando um bolinho.

    Sim, claro. Concordou Lúcia. Suponho que ficaram sabendo dos casos de gado desaparecido, correto?

    Douglas e Ana assentiram com a cabeça.

    O fato desses desaparecimentos estarem sempre acompanhados de luzes no céu chamou a atenção do governo. Continuou a cientista, se servindo de um copo de chá.

    Claro, quando o problema é da elite agropecuária aí o governo se interessa! Interrompeu Ana. O meu bairro tem várias ruas com esgoto a céu aberto e ninguém nunca…

    Ana, foco. Interveio Douglas.

    Enfim, continuou Lúcia Maurício esteve investigando esses casos, como parte do acordo…

    Lúcia se referia ao fim que Maurício levou pelo seu envolvimento no Jogo Sagrado: Ele cumpriu liberdade condicional em troca de seus serviços e compartilhar seus conhecimentos com o governo.

    — ...e descobriu que se tratam de abduções alienígenas.

    Douglas e Ana nada disseram. Apenas franziram o cenho ao se lembrar dos seres na plateia do coliseu dourado de Carcosa.

    Até agora a gente não teve nenhuma confirmação de que o Rei Amarelo tá metido nisso. Comentou Marcos.

    Meus contatos estão ajudando a traduzir a linguagem deles. Falou Lúcia Felizmente nossos rituais estão sendo bastante efetivos.


    O celular de Lúcia tocou.

    O QUÊ?! Indignou-se após atender e saber do que se tratava.

    Quem era? Perguntou Douglas.

    Maurício. Ele disse que tem um monstro gigante atacando.

    Ah não! De novo não! Ana bradou aos céus. Isso já devia ter acabado!

    Esse Urgheol parece diferente daqueles outros. Comentou Douglas, que já foi conferindo as notícias no celular. Será que tem mais um Jogo Sagrado acontecendo?

    Espero que não. Marcos fez uma cara sofrida.

    O coração de Lúcia palpitava. Ela queria consultar os deuses proibidos, mas seus últimos cortes ainda não haviam cicatrizado. Normalmente era ela quem dizia o que fazer, mas naquele momento estava tão perdida quanto os demais.

    Foi então que todos foram surpreendidos por uma forte luz azul que se manifestou no centro da sala. De dentro da luz, saía uma voz:

    Saudações, terráqueos. Era uma voz feminina e cordial Eu faço parte da tripulação de seres que vocês chamam de “alienígenas”. Enquanto a voz falava, a luz assumia padrões e tonalidades que deixavam todos ali com um sentimento de leveza e bem-estar.

    Ana ficou admirada com aquelas luzes todas. “Eu poderia usar isso num show”, pensou ela.

    Meu nome é Plassan. Disse a voz. Estou realizando esta transmissão para dizer que a criatura atacando a cidade de vocês não é um Urgheol! Ela pode ser derrotada!

    Enfim uma boa notícia. Comentou Douglas.

    Nós ofereceremos apoio aéreo. Disse Plassan. Não deixem que a cidade de vocês seja destruída!

    Ditas aquelas palavras, a iluminação do ambiente voltou ao normal. Fim de transmissão.

    Vou avisar o Maurício. Falou Lúcia.



*


    Os herois chegaram no local, uma das áreas abandonadas da cidade de Ponta de Faca.

    Diante deles estava o que parecia ser alguma espécie de ema gigante, mas com pernas, bico e pescoço mais grossos, um porte mais robusto. O que mais chamava a atenção naquele monstro era que ele parecia ser feito de várias lascas de algum tipo de material negro colado com uma argamassa vermelha, amarela ou alaranjada.

    Maurício, como grifo branco, voava ao redor tentando distrair a fera pra que ela não avançasse para zonas habitadas, enquanto Marie, segurando em suas costas, disparava mísseis no monstro.

    Acima de todos eles pairava no ar um veículo que lembrava muito um submarino.

    Aquela é a nave dos aliens? Peguntou Marcos Design curioso.

    E então Lúcia, como é que vai ser? Douglas perguntou pelo comunicador.

     Plassan me enviou uma série de instruções pra lidar com essa coisa. Pra começar, transformen-se em suas formas mais fortes!

    Assim que a cientista disse isso, Douglas e Ana imediatamente se transformaram em Semreh Magnus e Madre-Ax. Marcos hesitou um pouco, mas respirou fundo e também se transformou em Akleos.

    Guiados por Lúcia, cada um dos herois começou a fazer sua parte pra combater a ave colossal. Madre-Ax e Akleos foram cada um atacar uma das patas do monstros; Madre-Ax com seu machado e Akleos com seus punhos espinhentos.

    Semreh Magnus alçou vôo e começou a disparar rajadas de seu fogo dourado contra a ema.

    O monstro ficou perdido, sem saber a quem atacar. Decidiu se concentrar nos inimigos no chão.

    Merda! Gritou Madre-Ax, vendo que Akleos não teve tempo de desviar do bico do pássaro e tampouco ela de ajudá-lo. Felizmente, Semreh enviou uma rajada de vento para deslocar Akleos e assim evitar o pior.

    O bico da ave ficou preso no chão.

    Madre-Ax aproveitou o momento e saltou contra o pescoço da criatura, tentando decaptá-la com seu machado, não importando o quanto isso demorasse.

    Lúcia então transportou um dos robôs da Kegareshi pra que Akleos se fundisse com ele.

    Feito isso, Akleos começou a disparar com sua metralhadora giratória recém adquirida no rosto do inimigo, estourando um de seus olhos em um líquido negro e viscoso cujo cheiro lembrava muito o de gasolina.

    Madre-Ax seguiu o exemplo e deu uma machadada no outro olho do pássaro, cegando-o completamente.

    Plassan disse que a equipe dela vai finalizar essa luta. Anunciou Lúcia.

    Assim dito, o submarino voador concentrou uma esfera de energia na parte de baixo de seu casco.

    Após alguns segundos, a esfera se converteu em um feixe disparado contra o monstro gigante.

    A criatura se desmanchou no líquido viscoso, que logo evaporou.

    Os herois se destransformaram e ficaram encarando a nava dos aliens, que foi gradativamente descendo até chegar ao chão coberto de escombros.

    A porta da nave se abriu.

    Maurício e Marie ficaram empolgados com aquilo: Para Maurício, finalmente dar de cara com as formas de vida que estava investigando enchia seu peito de alegria. Vida extraterrestre! Ele se sentia uma criança novamente.

    A verdadeira criança, Marie, também estava gostando muito. Ela veria E.T.s iguais aos dos desenhos!

    Até Marcos estava gostando daquilo: Seria legal conhecer seres de outro planeta.

    Uma passarela se formou, conectando a porta do submarino espacial ao chão.

    Douglas e Ana não ficaram tão animados ao ver o que vinha da nave em direção a eles, não só porque era um inseto gigante, bípede e de quatro braços, com grandes asas, antenas e mandíbulas insetoides, mas também porque haviam seres como ele na plateia dourada do Rei Amarelo.

    Saudações, meu nome é Dazimok. Disse o inseto alienígena, quando se aproximou do grupo de herois. Levem-me ao seu líder.



*


    Todos retornaram ao prédio da Kegareshi, e com eles estava Dazimok.

    Antes de mais nada, por que vocês estavam roubando gado? Perguntou Lúcia pra criatura insetoide. Os braços da moça estavam cruzados e seu olhar era inquisitivo.

    Temos nossos motivos. respondeu o inseto espacial O mais importante é que queríamos chamar a atenção de vocês.

    Sério? Pra quê? Passado o susto inicial, Douglas estava até achando aquilo interessante.

    Ah, fico feliz que tenha perguntado isso! Disse Dazimok, se virando pro rapaz pardo de jaqueta. Eu e meus camaradas viemos pra Terra em busca de você, Douglas.

    Aquilo fez o coração de todos saltar pela boca. Douglas logo se recuperou:

    Ficou muito lisonjeado, mas por que eu sou assim tão importante pra vocês?

    Também estou curiosa. Disse Lúcia.

     Puxa, por onde devo começar? As antenas de Dazimok se moviam para cima e para baixo, independentes uma da outra. Você é um Buda, Douglas. Ou melhor: Está destinado a se tornar um.

    Buda?! Indignou-se Ana Cê tá mesmo falando que existe budismo no espaço?!

    Não é tão absurdo assim. Interveio Marcos, que logo em seguida tomou um gole de refrigerante de guaraná Os textos budistas volta e meia mencionam seres de outros mundos e universos paralelos.

    O lugar de onde você veio deve ser muito interessante. Comentou Maurício, sorridente.

    Esse é outro motivo pelo qual estou aqui. O tom de Dazimok ficou mais sério. Suas asas também vibravam. Eu venho de um império interestelar que caiu em ruínas e se tornou uma guerra de todos contra todos. Há um senhor de guerra que está procurando reunificar o império sob seu domínio, mas ele só está trazendo mais sofrimento por onde passa…

    E aonde eu entro nessa história? Perguntou Douglas.

    Caso ele consiga atingir seu objetivo, ele tentará expandir seu domínio pelo resto da galáxia, trazendo mais desgraça pro seu planeta. Eu acredito que se pudermos levar um líder pacificador de fora do império, alguém que não tem viés pra ninguém, as chances do conflito acabar sem desgraça serão melhores. Está disposto?

    Douglas ficou quieto.

    Preciso pensar. Respondeu.

    É compreensível. Disse Dazimok Mas lembre-se: Vocês não têm muito tempo.

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