Cidade Amarela, capítulo 0b - Ana

 

   -BUCETA! - Gritou Ana ao pisar em um bloquinho de montar. -Como é que essa merda veio parar aqui?!

    A moça jogou o bloquinho por cima do ombro e sentou na escrivaninha. Quarta de manhã e todos os seus alunos do dia haviam cancelado as aulas.

    Ela teria que fazer mais shows naquela semana, mas não importava.

    -Trabalhe com o que gosta e você nunca terá que trabalhar na vida.

    A manhã inteira só pra escrever mais músicas.

    Ela ainda vestia a blusinha e o shortinho com os quais dormiu na noite anterior.

    -Hum… - Nenhuma ideia vinha à sua mente. Ela nem se deu conta de que passou sete minutos rabiscando linhas aleatórias no papel.

    -E nem pra essa merda de ventilador me dar uma refrescada.

    Ana pensou em aproveitar a folga pra levar o ventilador pro conserto, mas toda oportunidade pra compor tinha que ser aproveitada.

    -Só preciso de um empurrãozinho – Pegou seu smartphone. Sempre havia alguma foto nele que a fazia pensar em música nova.

    A garota deslizou com o dedo pelas fotos: Festa de aniversário da ex-namorada, o show que foi cancelado porque ela bateu com o baixo na cabeça de um sem-noção, aquela vez em que ela caiu no soco com uma mulher trans na parada do orgulho LGBT…

    Então apareceu aquela foto. Era a mais antiga que havia aparecido, do tempo da faculdade.

    Ela estava abraçada com um rapaz com quem saía na época. Ele vestia uma jaqueta e seu rosto tinha traços finos; seu cabelo não chegava a ser longo, mas era mais comprido que o da maioria dos homens, ao contrário de Ana, que sempre preferiu deixar o seu mais curtinho.

    -Douglas. - Suspirou. Aonde será que ele havia se metido?

    Naquele exato momento seu celular vibrou e uma janelinha apareceu. Uma outra jovem, que Ana havia conhecido num aplicativo de namoro, lhe mandou uma mensagem com um link.

    -Se for mais uma daquelas merdas de ancap eu bloqueio essa vadia agora mesmo.

    Mas não era.

    Era um vídeo de uma pessoa vestindo uma espécie de traje de batalha azul e negro enfrentando o que parecia ser um ouriço-do-mar gigante.



*


    Ana tomou um copo enorme de suco de maracujá. Nem pôs açucar porque já foi engolindo tudo direto, sem saborear.

    Reassistiu ao vídeo.

    Sem sombra de dúvidas, aquele era Semreh, ou seja: Douglas. E aquele monstro só podia ser um Hastur.

    Ana se vestiu e disparou pelas ruas com sua scooter. Seu coração parecia prestes a explodir enquanto ela contornava carros e ultrapassava farois fechados; naquele momento ela não podia deixar coisas supérfluas como leis de trânsito ficarem em seu caminho.


*

    Após muito rodar, Ana finalmente chegou ao local aonde supostamente aconteceu a luta no vídeo: Um prédio relativamente barato numa área de classe média-baixa na cidade.

    A moça tirou o capacete e desceu da moto.

    -Pensei que teria mais gente aqui.

    Ana se permitiu um momento de tranquilidade para saborear o perfume dos vários ipês plantados ao longo da calçada, que davam à Ponta de Faca o apelido de “Cidade Amarela”.

    Nisso, foi surpreendida por uma voz que não ouvia há muito tempo.

    -Ana, é você? - Perguntou Maurício.




    -Que saudade! - Ana se jogou sobre Maurício e o abraçou o mais forte que pôde, sem se preocupar em amassar o terno do rapaz. Após soltá-lo, perguntou:

    -Você tem a ver com o que aconteceu? Digo, você também viu o vídeo, né?

    -Ah, vi sim. - Não foi uma mentira total. - Você está com pressa? Conheço um bar não muito longe daqui aonde podemos conversar.


*

    -Então, o que tem feito desde a faculdade? - Perguntou Maurício enquanto se servia de cerveja.

    -Ah, você sabe. - Respondeu Ana com a boca cheia de batata frita. - Dou aulas de baixo e faço shows. -Engoliu. - Ah; não, obrigada. - Ela disse quando Maurício quis encher um copo pra ela. - Não bebo em dia de semana.

    -Mas que tipo de punk é você? - Brincou o outro.

    -O nome disso é “straight edge”. -Respondeu a garota. - Além disso, alguns dos meus alunos são crianças; não quero dar mau exemplo. - Completou sem se lembrar de que não muito tempo atrás ela havia pilotado sem responsabilidade alguma.

    -Eles deixam você chegar perto de crianças?! - Maurício brincou mais uma vez, totalmente ignorante das implicações de sua fala.

    Ana esboçou um sorriso irônico.

    -Vamos ao que interessa. - O rosto da moça se fechou. - O que está acontecendo? Aquele monstro no vídeo era um Hastur, certo? Por que ele estava no apartamento do Douglas? Ele escapou de vocês e foi caçá-lo? Aliás, onde está o Douglas?

    Maurício suspirou.

    -Você ainda tem combustível sobrando?



*


    Ana e Maurício chegaram ao parque Kiamái Kierê.

    O movimento naquele horário e dia da semana era baixo. Haviam algumas crianças brincando na área de lazer, enquanto suas babás as observavam (nem todas, algumas fofocavam ou mexiam no celular).

    -Você lembra daqui, né? - Perguntou Maurício, sem se importar com os olhares que recebia por estar vestindo um terno.

    -É claro que sim. -Respondeu a roqueira. - Mas me sinto estranha em vir aqui durante o dia. Douglas também está aqui?

    Maurício ignorou a pergunta.

    -Quero te mostrar uma coisa.

    Eles então seguiram por uma das trilhas bosque adentro. O Kiamái Kierê era um dos poucos lugares em Ponta de Faca aonde as árvores não eram os típicos ipês.

    Várias lembranças vieram à cabeça de Ana enquanto percorria a trilha. A emoção da batalha, o dinheiro ganho por cada Hastur destruído, o sexo com Douglas no meio do mato…

    -Chegamos. - Maurício trouxe Ana de volta pro presente.

    -Acho que nunca estive nessa parte do parque. -Olhou ao redor da clareira. - O que você queria me mostrar?

    Maurício tirou um tubo de ensaio do terno e abriu a tampa. O conteúdo escapou na forma de fumaça roxa, numa quantidade muito maior do que aparentava caber naquele recipiente.

    A fumaça se solidificou, formando uma criatura… estranha. Ana chamaria de “Hastur”, mas aquilo era bizarro demais: A estrutura do corpo lembrava a de um centauro, mas a parte inferior era de onça enquanto o corpo da parte superior parecia uma mistura de ave e réptil. Os braços eram pinças de caranguejo enquanto a cabeça daquela monstruosidade parecia ser um botão de rosa com dentes afiados.

    -M-m-m-mas que porra é essa?! - Indignou-se Ana diante daquela aberração, que parecia ter três metros de altura.

    -De fato, esse Hastur não é um dos meus melhores trabalhos em termos de estética; é uma colcha de retalhos de vários experimentos mal-sucedidos, o que é uma pena porque você nem imagina o trabalho que eu tive pra conseguir DNA de velociraptor. - O tom cordial de Maurício se tornou muito estranho naquela situação. - Mas veja só a hora, tenho que ir.

    Um par de asas brancas brotou das costas do rapaz, que levantou vôo.

    Ana nem conseguiu dizer nada, só ficou olhando pra cima com cara de sonsa.

    O Hastur rugiu.

    Ele não sai do lugar”, pensou a garota. “Ele está… esperando eu me transformar?”

    Já fazia tanto tempo, mas de repente o conhecimento voltou, como andar de bicicleta.

    A energia da alma de Ana se espalhou por todo o seu corpo material. Ela foi envolvida por um traje negro que exalava um ar futurista; o tórax e as extremidades da armadura pintaram-se de verde, assim como uma viseira da mesma cor se formou em zigue-zague no capacete da guerreira, e pequenas asas também verdes brotaram de sua testa.

    Um bastão materializou-se para ser usado como arma.

    Aquela forma era chamada de “Madriax”.

    Assim que a transformação se completou, o Hastur avançou sobre Madriax, que instintivamente rolou para o lado e ao se levantar bateu com seu bastão nas costas da parte de onça.

    Um urro ecoou pelo parque.

    Ele sentiu dor?pensou Madriax. “Quer dizer que isso não é um zumbi?

    O monstro quimérico começou a usar suas pinças crustáceas pra desferir golpes contra Madriax, que por sua vez usava seu bastão tanto pra se defender quanto pra contra-atacar, atingindo os braços da criatura bem como as costelas do corpo de “dinossauro”.

    Conforme isso acontecia, Madriax era forçada a recuar mais e mais, até que bateu as costas numa árvore.

    O Hastur ergueu-se nas patas traseiras e deu uma patada com suas garras de onça.

    Madriax se jogou pro lado, enquanto a árvore foi destroçada.

    Se ao menos Semreh estivesse aqui”.

    Ela se referia às chamas azuis do colega, capazes de facilitar o uso de seus poderes.

    -É, não tem outro jeito.

    A guerreira aproveitou o tempo que lhe restava para assumir uma nova forma:

    As partes verdes de seu corpo mudaram para um azul mais claro que o de Semreh; Madriax pôde sentir seu corpo ficar mais leve enquanto o bastão se transformava em uma pistola.

    Ela virou em direção ao monstro e disparou antes que ele se aproximasse ainda mais. Não eram balas que saíam, e sim fragmentos de sua alma.

    A boca de flor do monstro liberou um guinchado em agonia enquanto as patas de caranguejo tentavam em vão se defender.

    O Hastur saltou sobre Madriax, que reagiu muito mais rápido graças à essa nova forma. Ela correu em círculos ao redor da abominação, disparando por todas as direções.

    A forma “pistoleira” era mais frágil fisicamente, então Madriax precisava fazer de tudo pra não ser atingida.

    Madriax foi atingida.

    Dentes foram disparados pela rosa grotesca, o grito de Madriax assustando os pássaros e macacos que ainda não haviam fugido.

    Com dificuldade, a atiradora se colocou em pé. Ela não aguentaria mais um golpe naquela forma.

    O Hastur disparou mais uma rajada de dentes. Dessa vez Madriax não foi surpreendida, saltando para o alto de uma árvore.

    Respirou fundo.

    Saltou mais uma vez, em pleno ar assumiu uma terceira forma, a última de seu repertório.

    As porções azuis do traje se tornaram laranja, ao mesmo tempo em que uma couraça da mesma cor envolvia a parte negra da roupa, aumentando o peso da guerreira.

    Sua pistola se transformou em um par de manoplas gigantes em forma de punho cerrado, permitindo que Madriax caísse como um meteoro nas costas quadrúpedes de seu inimigo, quebrando sua coluna.

    -Ainda vivo? - Perguntou a pugilista, ignorando as dentadas e arranhões do monstro. -Cacete, acabei de assumir essa forma e já tenho que sair dela. - Madriax retornou à forma verde, com bastão.

    A energia de sua alma foi concentrada na ponta do bastão, formando uma broca cônica que foi imediatamente fincada no tórax de dinossauro, centrifugando o bicho ao ponto de reduzi-lo a fumaça roxa.

    -Essa foi foda. Caprichou, Maurício.

    Foi então que Madriax notou um papel jogado aonde o Hastur estava: Era um mapa com a localização de Douglas.

    -Mas que caralho, precisava mesmo me fazer passar por tudo aquilo? Isso me tá com cara de ser um daqueles planos mirabolantes cheios de etapas que não fazem o menor sentido pra quem não é nerd em estágio terminal.

    Ana imediatamente caiu ao encerrar a transformação. Virar Madriax, se alternar entre múltiplas formas, o golpe da furadeira… Tudo isso minou as forças dela.

    Deitada de barriga pra cima, a moça olhou o mapa.

    -Aguenta firme, Douglas. Tô chegando.

    Rodeada de árvores, Ana tirou um cochilo.

Comentários

  1. Parabéns !!! Que consiga continuar a escrever. Agradeço a oportunidade de ter recebido o manuscrito dos dois capítulos publicados ainda no e-mail. Abs e sucesso.

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