Cidade Amarela, capítulo 0c - Alexandre

-Hora do refresco! - Brincou Alexandre ao regar sua samambaia. -Vê se deixa um pouco pra sua amiga, está bem? - O brutamontes se referia à larva que morava na planta. De que inseto será? Bom, aquilo não tinha importância. Após cuidar de sua planta, Alex admirou a faxina que fizera em sua casa: O chão reluzente, os halteres organizados, os livros sem poeira… tudo isso lhe deu uma enorme sensação de paz e conforto, quase como se estivesse mais leve.

Falando em livros, bem ao lado de suas Fábulas de La Fontaine estava um livro sobre a Guerra Franco-Prussiana que ganhara como presente de despedida de seu antigo colega de escola, Douglas, ao entrar para a Legião Estrangeira.

-Será que ele ainda mora aqui em Ponta de Faca?





***






-Boa tarde, Dra. Nakajima. - Disse Alex ao chegar no prédio da Kegareshi.

-Já falei pra me chamar de Lúcia. - Respondeu a oriental, sem tirar os olhos do monitor enorme a sua frente. - Ainda não tirei meu doutorado.

-Sempre esqueço disso. - Respondeu o legionário.

Lúcia aparentava ter quase a mesma idade que Alexandre, mas a forma como se portava a fazia parecer bem mais velha.

Vendo que os dados na tela estavam dentro dos padrões, Lúcia se permitiu virar o corpo pra encarar seu interlocutor.

-Você demorou. Parou pra alimentar algum gato de rua? - Perguntou com os braços cruzados e um meio sorriso.

-Não dessa vez. Falando em animais de rua, cadê o Marcos?

-Consertando o equipamento de combate. Ih, olha só quem chegou.

-Reparos concluídos. - Disse Marcos, entrando na sala. - Faltava só um tiquinho pra eu quebrar meu tempo recorde. Ah, e aí Alex.

Marcos era o irmão mais novo de Lúcia. Diferente da moça, que se destacava por ser nikkei, o rosto de Marcos se misturava facilmente na multidão brasileira. Ele era adotado.

-Algum Hastur, mana?

-Nenhum ainda. - Lúcia voltou pro computador – Mas estejam preparados.

Hastur”, pensou Alexandre.

O motivo dele ter voltado pro Brasil. Ao completar seu treinamento na Legião Estrangeira, Alex foi imediatamente levado para um regimento dedicado a combater essas criaturas pela Europa. A parte boa é que quase não havia necessidade de matar outros seres humanos, mas ele não podia deixar de sentir que ele e seus irmãos de armas eram apenas buchas-de-canhão enviados pra testar as forças inimigas.

-Ô, acorda! - Marcos o chacoalhara. - Apareceu um!

-Se me lembro bem agora é a sua vez de subir primeiro no teletransportador. - Lúcia disse para Alex. Como ela estava de costas, podia sorrir à vontade.

Alexandre suspirou. A plataforma de teletransporte ainda era um protótipo, então Alexandre e Marcos se alternavam entre quem teria suas partículas desmontadas e rearranjadas primeiro.

O veterano subiu no círculo mecânico e foi imediatamente transportado para uma avenida movimentada; Marcos apareceu logo em seguida.

-Parece que nenhum de nós virou homem-mosca ainda. – comentou o irmão da “patroa”. E, ao ver a multidão correndo, acrescentou: -Acho que também não vamos precisar evacuar a área.

-Lúcia, deu tudo certo. - Avisou Alexandre por um pequeno fone em seu ouvido. -Pode mandar a carga.

Dito isso, o equipamento de combate foi transferido para os dois: Marcos recebeu luvas, botas, joelheiras e cotoveleiras especiais; além disso, também foi cercado por quatro robôs de formato humanoide para reforçar sua segurança.

Alexandre foi envolto por uma armadura robótica prateada. Seu design possuía uma estética ao mesmo tempo antiquada e futurista, como as pessoas de gerações passadas imaginavam a tecnologia futura.

O nome que Lúcia registrou na patente era ZB-7, mas Alexandre teve permissão para usar o codinome Chevielier; um cavaleiro da vida moderna.

Na direção da dupla veio o inimigo: Uma criatura lembrando um lobisomem sem pelos e sem olhos no rosto, embora houvesse uma miríade espalhada pelo resto do corpo.

A pele acinzentada lembrava a de um cadáver, mas Chevielier já enfrentara outros idênticos àquele em Ponta de Faca e mesmo antes da análise de Lúcia já podia dizer que não eram completamente mortos-vivos como os que destruía na Europa.

A criatura corpulenta também possuía três bocas, sendo que uma ainda mastigava uma perna humana, pingando sangue, gordura e fiapos de carne.

Chevielier achava excepcionalmente repulsivo quando um desses monstros atacava durante o dia: Era como se a luz do sol tivesse traído a humanidade.

-Mãos nuas? - Perguntou Lúcia para o soldado de prata.

-Mãos nuas; eu aviso se precisar de suporte. Permissão para atacar.

-Concedida.

Chevielier correu em disparada contra o monstro, que jogou a perna fora e correu sobre quatro patas em direção ao “cavaleiro moderno” e então saltou contra ele, as três bocas repletas de dentes afiados.

O soldado imediatamente deu um giro e chutou o Hastur pro lado, chocando-o contra o asfalto.

Após se recobrar, o lobisomem uivou com suas três bocas, e de seus vários olhos foi expelida fumaça roxa, que se solidificou em um grupo de seres de aparência humana, exceto por não possuírem rosto. Lúcia chamava esses seres de “homúnculos”.

-Marcos, pensa rápido! - Mal disse isso, Lúcia digitou um comando que fez com que um dos robôs jogasse Marcos contra os homúnculos, atingindo um deles com uma joelhada.

Os homúnculos eram mais fortes e resistentes que um ser humano comum, mas Marcos compensava isso com o equipamento acoplado a seus membros, intensificando seus golpes. Isso sem falar nos quatro robôs controlados a distância por Lúcia, lhe dando cobertura.

Vendo que os buchas-de-canhão estavam sob controle, Chevielier voltou sua atenção para o Hastur, dando um soco quando a fera se jogou contra ele de novo.

Dessa vez o monstro se recuperou mais rápido. Por dois segundos o monte de olhos se virou em direções alternadas e aleatórias, então três línguas pontiagudas saíram de cada uma das três bocas e atacaram Chevielier como serpentes dando o bote.

O “paladino” se esquivou com um salto; por um momento ele temeu que Marcos tivesse sido atingido, mas “só” uma árvore de ipê do outro lado da rua foi perfurada.

Espera”, pensou o cruzado contemporâneo, “foram apenas sete línguas”.

Antes que tivesse tempo de reagir, duas línguas se amarraram nas pernas de Chevelier e então se fincaram no chão.

Chevielier já sabia o que viria a seguir.

-Lâmina! - Gritou, e, automaticamente (Lúcia era rápida no teclado), um facão foi teletransportado para a mão de Chevielier, que decepou as outras línguas que retornaram para lhe atacar. Ele próprio se impressionou: Normalmente aquele facão conseguia apenas eletrocutar a língua dos lobisomens.

-O que foi? - Perguntou Lúcia, não sem um punhado de soberba- Você não achou que eu não atualizaria minhas criações, achou?

Enquanto o Hastur “lambia” suas feridas, tentando entender o que aconteceu, Marcos deu um soco em uma das bocas do ser, espalhando dentes quebrados. O rapaz já estava ofegante por destruir os homúnculos, mas felizmente os robôs controlados por Lúcia o auxiliaram com suas motosserras e metralhadoras giratórias.

O Hastur estava repleto de cortes, muitos olhos estourados e seu braço esquerdo quase desprendendo.

Faltava o toque final.

Uma pistola militar se materializou na mão livre de Chevielier; seu disparo pulverizou o Hastur em mil pedaços, que então se dissiparam em fumaça roxa.

-Como está o braço? - Perguntou Lúcia.

-Doendo, como sempre. - Respondeu Chevielier. Aquela arma foi feita para ser usada em conjunto com a armadura, pois seu recuo era tão alto que poderia arrancar o braço do atirador; a própria armadura sofria danos quando aquela pistola era disparada, por isso ela só era usada para encerrar a luta.

Antes que Lúcia tivesse tempo de mandar um veículo buscar os lutadores (o teletransporte até o momento tirava as coisas de dentro do prédio da Kegareshi), mais lobisomens apareceram, se materializando a partir de diversos pontos daquela avenida. Cada um invocou seu próprio grupo de homúnculos.

-AH, TÁ DE SACANAGEM! - Berrou Marcos.


Mas naquele momento, duas pessoas “caíram do céu”, provavelmente do alto de algum prédio.

Eram um homem e uma mulher vestindo trajes negros com partes azuis (ele) e verdes (ela). A mulher combatia os inimigos com um bastão, enquanto o homem lutava com as mãos nuas.

Os membros da Kegareshi ficaram embasbacados com a facilidade que aqueles dois destruíam tanto homúnculos quanto Hasturs.

Terminado o massacre, Chevielier chamou:

-Quem são vocês?! Indentifiquem-se!

Os trajes se dissiparam, revelando uma moça (talvez, era difícil dizer) e um rapaz.

-D-Douglas? - Perguntou Chevielier.

-Conhece? - Quis saber Marcos.

-A gente estudou na mesma escola.

-Ótimo – Comentou Lúcia, observando a situação através das câmeras nos visores de Chevielier e dos robôs – Assim fica fácil pra recrutar esses dois.

Não muito longe dali, Maurício observava aquilo tudo escondido e com um sorriso inocente em seu rosto.

Todas as peças foram colocadas no tabuleiro.

Começou o jogo.

 

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