Cidade Amarela, Capítulo 8

 

    Sábado a noite em Ponta de Faca.

    Um festival de vinhos estava sendo realizado na Cidade Amarela.

    Lúcia caminhava sozinha pela multidão, procurando por algum vinho que a interessasse. Os últimos acontecimentos fizeram sua ansiedade disparar, e seus pais acharam que seria bom que ela se ocupasse com algo menos sério, pra esfriar a cabeça.

    Todos os seus amigos estavam ocupados de alguma maneira, mas isso não a incomodou: Ela gostava da própria companhia.

    Ao passar pela área de vinhos franceses, um rótulo lhe chamou a atenção: Sang de Dieu. Ela já tinha ouvido comentários sobre aquele vinho.

    -Ah, a safra de 1964 é ótima! - Disse uma voz masculina e suave próxima a ela. - A julgar pelo seu olhar assassino presumo que já saiba quem eu sou. O que acha de nos sentarmos naquela mesa?


*


    -Quer me desafiar pra um duelo também? - Perguntou Lúcia com a voz dura.

    No outro lado da mesa, Maurício riu. Aquela risada não soava como a de alguém que criava monstruosidades; esse contraste deixava Lúcia desconfortável.

    -Oh não, não. - Respondeu Maurício, enchendo as taças de ambos com Sang de DieuEu estou aqui a passeio, assim como você. - Maurício deu um golinho na sua taça antes de continuar – Felizmente nossos fios se cruzaram na tapeçaria do destino e eu não pude deixar passar a oportunidade de te conhecer pessoalmente. Afinal, graças a você eu pude fortalecer meu corpo com um esqueleto mecânico.

    -Você usou a minha pesquisa!

    -E em troca eu te presenteei com a minha. Espero que esteja fazendo bom uso dela. - Maurício bebericou mais um pouco de vinho.

    Naquele momento, a maior ambição da vida de Lúcia era socar o rosto de Maurício, mas ela se conteve.

    -Por que você está nos ajudando? Nós não somos inimigos?

    -O Jogo Sagrado possui regras. - Foi tudo o que Maurício respondeu.

    -Você sempre fala disso. O que é esse “Jogo Sagrado”, afinal?

    -Infelizmente não posso dizer. Poderia atrapalhar nossos planos. O que posso me dar ao luxo de revelar é que quando Igor vencer o Jogo Sagrado, os portões para um novo mundo se abrirão. Um mundo mais… aperfeiçoado, eu diria.

    Nós temos ideias bem diferentes do que é perfeição”; Lúcia pensou em dizer isso, mas preferiu não dar pistas de que ela sabia como seria esse “novo mundo”.

    O celular de Maurício recebeu uma notificação.

    -Ora, vejam só. Terei que voltar ao trabalho. - Comentou o rapaz, se erguendo – Espero que possamos nos rever algum dia.

    E foi embora antes que Lúcia desse uma resposta.


*


    -O que foi dessa vez, Lúcia? - Perguntou Douglas.

    Mais uma vez Douglas, Ana e Alexandre estavam reunidos no prédio da Kegareshi junto de Lúcia e Marcos.

    Todos haviam se recuperado de suas feridas e estavam prontos para o próximo conflito.

    -Tem uma coisa que eu quero lhes mostrar. Sigam-me.

    O grupo seguiu Lúcia escada abaixo até o subsolo do prédio.

    Lá embaixo se encontrava uma sala aonde os quatro robôs de Marcos montavam guarda; Alexandre notou que eles estavam com mãos no lugar das típicas motosserras e metralhadoras.

    -Mas o quê?! -Ana se indignou com o que havia no centro da sala: Quatro cadeiras elétricas, com o que pareciam ser óculos de realidade virtual.

    -O que significa isso, Lúcia?! - Alexandre também não gostou nada do que viu.

    -Outra traquitana da sua família? - Perguntou Douglas com um ar zombeteiro.

    -Sim. - Respondeu Lúcia, já sentando em uma das cadeiras.

    -Oh… - Disse Ana – E pra quê exatamente isso serve?

    -Bem resumidamente, é uma máquina de clarividência mais precisa do que o ritual que costumo fazer. Ela exige quatro pessoas e o processo é super doloroso, por isso eu quase não a uso.

    -Interessante. - Comentou Douglas, se sentando em outra cadeira.

    Ana e Alexandre se entreolharam.

    -Eu preciso controlar os robôs. - Resmungou Marcos, notando a hesitação dos dois.

    Os dois se sentaram nas cadeiras vazias e colocaram os óculos. Marcos digitou um comando no computador da sala que fez com que cada robô inserisse uma agulha agulha no braço de cada um dos quatro que se sentaram; o sangue deles era coletado e usado no funcionamento do dispositivo.

    Marcos ligou as cadeiras.

    Uma forte corrente elétrica atravessou o corpo dos quatro herois. Douglas, Alexandre e Lúcia conseguiram se segurar, mas Ana não aguentou: A eletricidade percorria seu corpo espalhando dor por todos os órgãos, ossos e músculos. Vários berros consecutivos saíam da boca da moça, e lágrimas escorriam por detrás dos óculos.

    -Ana, aguenta só mais um pouco! - Gritou Marcos.

    Então ela viu. Os quatro viram.


*


    Era um menino. De algum modo, os quatro sabiam instintivamente que aquele era Igor quando criança.

    O menino Igor podia fazer as pontas de seus dedos brilharem, além de curar pequenos machucados das outras crianças.

    Na adolescência, o jovem Igor já era capaz de curar doenças leves, como gripe.

    Os herois podiam sentir que foi naquele momento que Igor aceitou a ideia de que era um enviado divino. Infelizmente, ele usou dessa benção para se impor sobre as outras pessoas; ele procurava assumir uma posição de autoridade, por menor que fosse, como representante de turma por exemplo, e então depejava regras draconianas sobre aqueles “abaixo” de si.

    Padres e pastores foram chamados para conversar com o jovem Igor, tentar convencê-lo de que seu dom deveria ser usado para promover a palavra de Deus, não para impor sua própria vontade.

    Naquele momento, os quatro puderam sentir o ressentimento que floreceu no âmago de Igor.

    Conforme Igor cresceu, ele foi procurando em livros e círculos sociais alguma religião, alguma divindade que pudesse legitimá-lo.

    Ele chegou a esbarrar no Satanismo, mas o considerou “indigno”.

    As próximas sequências foram rápidas e desconexas, mas deu pra perceber que estavam relacionadas aos Hasturs e o Rei Amarelo.

    A próxima visão foi mais estável, envolvendo a mulher que viria a ser a mãe de Douglas. Além da dor do choque elétrico da cadeira, o coração de Douglas também sentiu fortes pontadas de tristeza e saudade, saudade de alguém que ele nunca conheceu.

    Igor a considerou uma mulher “digna” e eles eventualmente namoraram.

    Porém, desde o início do namoro até o casamento, Igor desenvolveu um forte sentimento de ciúmes, que virou paranoia, até que acabou se tornando uma convicção de que estava sendo traído.

    Igor sempre se esforçou para mascarar isso, mas os quatro herois sentiam um forte embrulho no estômago com aquilo tudo.

    Pula-se alguns anos, e Douglas nasce; sua mãe morre no parto.

    Os óculos pararam de transmitir imagens. As cadeiras pararam de dar choque.

*


    Marcos preparou chá de camomila pros outro quatro herois. Estavam muito abalados.

    -E aí, o que vocês viram? - Perguntou ele.

    -O que eu já dizia- Respondeu Douglas, segurando sua caneca com certa dificuldade – Meu pai é um bosta.

    -O maldito tá orquestrando isso tudo só porque tá putinho por não ser tratado como um floquinho de neve. - Ana tremia. Se era de raiva ou por causa da experiência que acabou de passar, não dava pra dizer.

    -A gente já sabe o motivo, - Alexandre bebeu um gole de chá – mas ainda precisamos descobrir seu objetivo real.

    Marcos e Lúcia se entreolharam.

    -Bom, parece que finalmente chegou a hora de eu lhes mostrar uma coisa. - Disse a moça.

    Lúcia pegou seu estilete e cortou o pulso, fazendo pingar sangue na tela de seu smartphone. Ana e Alexandre ficaram horrorizados.

    A cientista então mostrou o celular para todos: O mundo inteiro povoado por Hasturs e alguns dos tais “Verdadeiros Donos do Planeta” que serviram de base para as horrendas criaturas. Os poucos humanos que restavam viviam em cidades douradas, sob o domínio de tirânicos sacerdotes.

    -Que caralhos é isso?! - Chocou-se Ana.

    -O futuro que Igor quer pra Terra. - Respondeu Lúcia. Ela já estava tão acostumada a ver aquelas cenas que seu tom soou desconfortavelmente casual.

    -Certo. - Disse Alexandre – Igor é perigoso demais pra continuar vivo.

    Todos olharam pra ele espantados.

    -Então você finalmente concorda comigo? - Perguntou Douglas, fazendo força pra não sorrir.

    -Não. Bem… sim. - Alex ainda estava confuso com sua própria mudança de pensamento. -Olha, eu só quero neutralizar uma ameaça. Eu não gosto nem um pouco da sua vingança pessoal.

    -Lúcia, tem alguma forma da gente impedir isso? - Perguntou Ana.

    -Tudo o que sei é que Douglas tem um papel fundamental pra que isso não aconteça.

    Silêncio geral.

    -De qualquer forma, a gente tem que descansar. - Ana tentou quebrar o gelo – A gente não tá em condições de fazer porra nenhuma.

    -Tem razão. - Concordou Douglas – Bom, eu vou pro meu dormitório meditar.

    -Boa noite. - Respondeu Lúcia. E então, virando-se para os demais – Vocês também estão dispensados.

    Um a um, Ana, Alexandre e Marcos se retiraram, deixando Lúcia sozinha com as cadeiras elétricas.

    -O que Maurício tem a ganhar com isso? - Ela se perguntou – Ele não parece ser do tipo que busca poder.



*



    Três dias se passaram sem nenhuma atividade estranha.

    Os membros da Kegareshi estavam reunidos mais uma vez, prontos pra subir no teletransporte.

    Estavam todos descansados e decididos a acabar com isso de uma vez por todas.

    Foi determinado que todos ajudariam Douglas a subjulgar Igor através da força numérica, mas ele é quem daria o último golpe.

    Douglas, Ana, Alexandre e Marcos foram transportados para a área livre do triplex de Igor, já que infelizmente Lúcia não conseguiu identificar as coordenadas do interior do prédio, muito menos do piso aonde Igor costuma ficar.

    Mal chegaram ao local, fumaça roxa pairou em frente ao grupo, se solidificando na forma de vários homúnculos.

    -Mas é claro que os arrombados já estavam esperando pela gente. - Resmungou Marcos, que imediatamente recebeu seu equipamento e foi cercado pelos robôs. - Vão na frente, eu vou cuidar desses aqui.

    Douglas, Ana e Alexandre correram pra dentro do prédio.

    Dois homúnculos avançaram sobre o trio, mas foram imediatamente metralhados pelos robôs de Lúcia.

    Marcos trocou socos, chutes e joelhadas contra os homúnculos, as vezes agarrando algum pelo pescoço e jogando contra outro que os robôs não conseguiram manter longe dele.

    Lúcia coordenava os robôs de modo a afastar o máximo possível de homúnculos de Marcos. Ainda assim, seu irmão adotivo acabava tendo que lutar contra até três pessoas sem rosto ao mesmo tempo.

    Surpreendentemente, isso não incomodou o rapaz: É claro que uma motosserra ou metralhadora seria melhor, mas graças à simplicidade de seus golpes ele tinha tempo de atacar um inimigo e então voltar sua atenção para outro.

    -Ah, não vai não! - Gritou Marcos ao ver um homúnculo aproveitando a confusão pra entrar no prédio atrás dos outros herois.

    Marcos saltou com uma joelhada contra o homúnculo e então deu um soco de cima pra baixo. Derrubou o homúnculo no chão e então esmagou sua cabeça com uma pisada.

    Aquilo não parecia acabar nunca, mas não importava. Enquanto ele pudesse fazer alguma coisa pra ajudar, ele o fará até seu último suspiro.


*


    Assim que entraram no prédio, Douglas, Ana e Alexandre se depararam com um Hastur. Era um ser humanoide peludo de quatro braços, dedos terminando em garras pontiagudas e cabeça de morcego; das costas brotavam viscosos tentáculos.

    -Podem ir. - Disse Alexandre – Dois contra um ainda é uma vantagem contra Igor.

    Douglas e Ana subiram a escada pro andar superior, sem deixar de prestar atenção em como aquele Hastur simplesmente os ignorou, mantendo-se focado em Alexandre.

    -É engraçado como esses Hasturs vivos possuem senso de honra. - Comentou Alex, pressionando um botão no relógio de pulso que ganhou de Lúcia.

    O aparelho se sincronizou com a alma de Alex, fazendo com que o corpo do soldado fosse envolto por uma armadura semelhante à Chevielier, mas branca ao invés de prateada, e com aneis dourados pintados ao redor dos pulsos, tornozelos e pescoço.

    O portador enxergava um nome escrito no topo do visor: “Chevielier Blanc”. Era um bom nome.

    A tecnologia da armadura também enviava sinais ao cérebro de Chevielier de modo que ele tivesse consciência da saúde de seu próprio corpo.

    E pensar que isso foi criado com o apoio de magia negra”, pensou Chevielier. “Mas bem, se Lúcifer é o ‘portador da luz’…”.

    Sua divagação foi interrompida pelo Hastur, que lançou um de seus tentáculos sobre o heroi.

    Chevielier simplesmente moveu o tronco de modo a se esquivar do tentáculo com o mínimo de movimento. O mesmo valia para golpes em direção às pernas ou à cabeça.

    -Essa versão Blanc é incrível! - Admirou-se Chevielier, quase ignorando o monstro a sua frente. -Vamos ver como ela é no ataque.

    Chevielier apertou um botão em seu pulso esquerdo e um sabre francês se materializou a partir de sua alma.

    Empunhando o sabre, Chevielier Blanc avançou contra o inimigo, fatiando todos os tentáculos que tentavam lhe atingir, não importava a direção que viessem.

    Quando Chevielier se aproximou o bastante do Hastur pra fincar o sabre em sua carne, o monstro segurou o pulso de Blanc com os braços inferiores e começou a arranhá-lo com os superiores.

    Chevielier recebia automaticamente informações sobre os danos que recebia; aquilo era bastante prático pois o tornava menos dependente de Lúcia, que também poderia se focar em ajudar Marcos.

    Falando em foco, Chevielier tornou sua atenção de volta ao oponente e socou seu rosto, jogando-o pra trás com força o bastante pra atravessar a parede até o outro cômodo.

    -Hora de testar a longa distância. - O soldado apertou mais um botão na armadura, que materializou sua uzi na mão livre, então começou a disparar contra o homem morcego.

    O corpo do Hastur se abriu em várias pequenas feridas conforme ele era atingido pelos projéteis, que eram fragmentos da alma de Chevielier assim como os disparados pela pistola da forma azul de Madriax.

    O Hastur perdeu um olho, três braços e tinha músculos e entranhas expostas, espalhando um odor asqueroso pelo local.

    Chevielier jogou for a suas armas e apertou o botão associado à pistola finalizadora.

    Ao invés dela, o que apareceu foi um olho do tamanho de uma cabeça humana flutuando próximo ao ombro do guerreiro.

    O olho então disparou um poderoso feixe de luz que obliterou o Hastur, dissipando-o em fumaça roxa. O olho então liquefeu-se.

    -Boa ideia, Marcos. - Chevielier disse pro ar.


*

    No andar do meio, Douglas e Ana encontraram outro Hastur: Um bípede de aspecto reptiliano, mas com cabeça de aranha e esferas metálicas semelhantes a maças no lugar das mãos.

    -Ah, vai pra puta que te pariu! - Reclamou Ana – Douglas, pode subir.

    -Tá falando sério?

    -Tô. Com certeza vai ter algum outro obstáculo antes de você enfrentar o Igor. E de qualquer forma você disse que ele nunca dá o primeiro golpe, né? Dá pra esperar o Alex e eu chegarmos.

    -Você que sabe. - Respondeu Douglas, que subiu pro último andar.

    Ana ficou sozinha com o Hastur.

    -Vai esperar eu me transformar também? - Ela brincou com o monstro – Vocês são sempre tão cavalheiros.

    A moça então apertou o botão em seu relógio, um relógio igual ao de Alexandre.

    O corpo de ana passou por uma nova transformação: Era parecida com Madriax, mas o corpo era vermelho com adornos prateados ao invés do típico “preto com verde” que ela estava acostumada.

    No lugar do bastão, ela empunhava um machado com ambas as mãos.

    Só faltava pensar num nome criativo.

    -Ah foda-se, vai ser “Madre-Ax” mesmo. - E avançou contra o monstro.

    Madre-Ax já foi dando uma machadada em direção à cabeça do inimigo, mas o Hastur rebateu chocando uma de suas esferas contra a lâmina da arma.

    Faíscas choviam pela sala conforme o machado de Madre-Ax e as maças do Hastur se chocavam, até que o monstro conseguiu dar um golpe forte o bastante pra tirar a arma das mãos de Madre-Ax fazendo-a parar na parede oposta.

    Antes que a heroína tivesse tempo de correr atrás do machado, o Hastur deu outro golpe nela, batendo com a maça em seu estômago.

    Para a surpresa de Madre-Ax, ela não sentiu dor alguma; apenas recebeu em seu cérebro informações sobre a área atingida e quanto dano ela sofreu.

    A guerreira vermelha aproveitou e se jogou com uma ombrada contra o Hastur, então começou a socar aquela cabeça nojenta de aranha com uma mão enquanto imobilizava um de seus braços com a outra.

    O quase-réptil acertava Madre-Ax com seu braço livre, mas ela nem ligava.

    Depois que se cansou de espancar o inimigo, Madre-Ax o agarrou pelo rabo e o arrastou até onde seu machado foi parar.

    O Hastur até tentou reagir, mas antes que tivesse tempo ele foi partido ao meio pela lâmina da heroína e dissipado em fumaça roxa.

    Aquela forma era sensacional: Madre-Ax podia sentir que ela combinava as forças das suas três formas anteriores mas sem nenhuma de suas fraquezas.

    A empolgação foi tanta que um uivo escapou de onde ficaria sua boca.


*


    No último piso, Douglas deu de cara com Maurício.

    -Deixa eu adivinhar – Disse o rapaz de cabelo liso – Meu pai tá na cobertura.

    -Correto. - Respondeu Maurício com seu sorriso costumeiro. - Imagino que já sabe o que vai acontecer aqui, então pulemos as formalidades.

    Assim que terminou essas palavras, Maurício se transformou no grifo branco e avançou contra Douglas que, já transformado em Semreh Cocytus, agarrou o braço do híbrido e torceu o ombro, cotovelo e pulso de Maurício.

    A rendição não durou muito, pois ele bateu com uma das asas no rosto de Semreh, que acabou o soltando.

    As penas de Maurício cortavam como lâminas, e ele sentiu como se elas tivessem diretamente cortado sua pele, como se ele nem estivesse transformado.

    Aquilo pegou Semreh de surpresa, mas ele imediatamente retomou o foco e soltou um chute frontal contra Maurício, que havia avançado mais uma vez.

    O impacto do chute jogou o grifo contra a parede oposta, quebrando a televisão no caminho.

    Maurício então alçou vôo. Mesmo dentro do apartamento, ainda havia espaço pra ele se locomover no ar com relativa facilidade.

    O grifo branco então mergulhou contra Semreh.

    Maurício acertava o guerreiro preto e roxo com o bico e imediatamente se distanciava, para então atacar de novo.

    Aquelas bicadas doíam pra caralho, mas Semreh não conseguia se defender delas.

    Desviar? Maurício o seguia como um míssil teleguiado.

    Agarrar o bico? Arranhões se seguiam.

    Dar um chute na cara do infeliz? Só servia pra machucar o pé.

    E daqui a pouco essa transformação também vai foder meu corpo de novo.”, pensou Semreh.

    Mais uma bicada.

    Mas quando Maurício se afastou pra peparar o próximo ataque, Semreh teve a ideia de que precisava: Ele rapidamente se jogou sobre o sofá pra pegar uma almofada, energizá-la e então jogar contra o inimigo.

    A almofada explodiu ao acertar Maurício, que mais uma vez foi jogado contra a parede pela força da explosão e caiu no chão.

    Semreh imediatamente se jogou contra o grifo e, com algum esforço, arrancou suas asas puxando-as o mais forte que pôde.

    Sangue, nervos e circuitos se espalharam pelo piso. Maurício segurou o grito e tentou arranhar Semreh, mas seu braço foi imediatamente decepado por um tegatana.

    -Aaargh! - Gritou Maurício, de volta à forma humana.

    Semreh também sentiu uma forte pontada no peito. Estava na hora de voltar a ser Douglas.

    -Vou considerar isso uma vitória sua. - Maurício tentou disfarçar a dor, enquanto ia atrás de seu braço decepado.

    O estômago de Douglas se embrulhou ao ver os buracos nas costas de Maurício.

    -Seu pai está lá em cima. - Maurício encaixou o braço de volta no lugar e de repente estava como novo. - Mais sorte dessa vez.

    Douglas sentiu um tom de sarcasmo, mas não disse nada.


*


    -Voltou para mais uma humilhação? - Igor olhava para o céu, como se esperasse alguma coisa.

    -Douglas! - Ana e Alexandre também chegaram à cobertura.

    -Três contra um? - Perguntou Igor, que só então virou o rosto para os visitantes – Além de tudo, você é um covarde.

    Antes que algum dos três herois fizesse algo em resposta, Igor continuou:

    -Mas não importa. A terceira etapa do Jogo Sagrado começou.

    Ao dizer essas palavras, fumaça roxa vinda de todos os cantos da cidade subiu até o céu e encobriu toda a Ponta de Faca.

    Um círculo se abriu no topo da redoma de fumaça, um portal para algum lugar desconhecido.

    Pétalas amarelas de ipê voaram da cidade inteira até o portal, formando uma escadaria que o conectava até a cobertura do triplex.

    Douglas, Ana e Alexandre se embasbacaram ao ver uma figura saindo do portal e descendo a escada de ipês.

    Pior ainda foi quando o ser finalmente pisou no chão da cobertura, entre os herois e Igor, que se prostrou de joelhos.

    Era um humanoide do tamanho de um homem adulto, coberto por um manto amarelo encapuzado. Seu rosto era coberto por uma máscara branca desprovida de qualquer feição além dos buracos dos olhos, mas não parecia haver nada por trás dela. Em sua cabeça repousava uma coroa dourada.

    Naquele momento, Alexandre foi atormentado por flashbacks do tempo em que enfrentava Hasturs como um frágil ser humano ordinário.

    Ana se arrependeu amargamente do dia em que se mudou para Ponta de Faca.

    Douglas sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. Se sentiu fraco, inútil e impotente, como se todas as coisas que fez em sua vida não tivessem servido pra nada.

    Era perfeitamente razoável que se sentissem assim.

    O Rei Amarelo chegou à Terra.

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