Cidade Amarela, capítulo 10

 

    -Estou pronto. - Disse Douglas após tomar seu comprimido ansiolítico.

    Dois dias se passaram desde que Douglas propôs seu plano para a Kegareshi.

    Alexandre ficou encarregado de treinar a Polícia Militar para combater os monstros enquanto Lúcia convenceu as outras empresas de tecnologia da cidade a fabricarem versões massificadas da armadura Chevielier original.

    Douglas e Ana subiram para o teletransporte. Para eles ficou a tarefa de encontrar Maurício.

    Lúcia os transportou até Kumã.


*

    -Que vazio… - Comentou Douglas assim que chegaram à universidade.

    -Chega a apertar o coração. - Lamentou Ana.

    Kumã era a maior universidade de Ponta de Faca; em um dia normal, ela chegava a parecer uma cidade dentro da cidade.

    Mas durante aqueles tempos de céu roxo e um buraco dourado que servia tanto de sol como lua, ninguém queria saber de estudo. As pessoas passavam a maior parte do tempo trancadas em casa, recebendo suprimentos diretamente dos caminhoneiros, que tinham permissão para atravessar temporariamente a barreira.

    -Mais um vazio. - Ana reclamou ao abrir a porta de um laboratório e não haver ninguém lá dentro. - Douglas, cê tem certeza que o Maurício tá aqui nessa porra?

    -Não. - Douglas foi curto e grosso. - Mas a gente tem que começar a procurar de algum lugar, e não temos condições de atacar o apartamento do meu pai agora.

    Ana tremeu ao lembrar do Rei Amarelo.

    A dupla então chegou à última porta que faltava checar.

    -Pronta? - Perguntou Douglas, com a mão na maçaneta.

    Ana fez que sim com a cabeça.


*

    -Eita! - Maurício pareceu genuinamente espantado – Eu não esperava receber visitas aqui, ainda mais vocês dois. – Ele imediatamente recuperou sua maneira habitual de falar.

    -Você vem com a gente. - Ordenou Douglas, procurando não prestar atenção no ambiente aonde estavam. Ana também procurava fixar seu olhar no rosto de Maurício.

    -Imagino que eu não tenho a opção de recusar esse convite, correto? - Ironizou Maurício. - Pois muito bem.

    Maurício se transformou no grifo branco, enquanto Douglas virou Semreh Cocytus.

    Ana continuou destransformada: Assim que Maurício mudou de forma, ela apontou seu relógio na direção do grifo e apertou um botão que fez disparar um pequeno fragmento da alma da moça na fera.

    Ao invés de atacá-los, Maurício alçou vôo, quebrando o teto do laboratório e fugindo. O teto se reconstruiu automaticamente.

    Antes que os herois tivessem tempo de questionar aquilo, o laboratório foi tomado por fumaça roxa.

    -Ah, merda! - Resmungou Ana.

    A fumaça se solidificou na forma de vários seres: Alguns homúnculos e um par de Hasturs idênticos, que Semreh inclusive já havia enfrentado antes.

    -Corre! - Gritou Semreh agarrando Ana pelo pulso e saindo desesperado pelo corredor.

    Fortes feixes de luz foram disparados de dentro do laboratório, pulverizando a parede. Os homúnculos sairam, acompanhados de um par de ouriços-do-mar voadores com um olho no centro de seus corpos. Assim que os monstros atravessaram, a parede se reconstruiu atrás deles.

    Assim que localizou os herois, um dos ouriços fechou o olho e se disparou como bala de canhão neles.

    Ana imediatamente se soltou de Semreh e se transformou em Madre-Ax, batendo com o machado na esfera espinhuda.

    -Foi com um desses que o Maurício atacou seu apartamento, né? -Perguntou a heroina – Vou te poupar desse gatilho, pode ficar com os homúnculos.

    Madre-Ax nem esperou Semreh agradecer e já partiu pra cima dos olhos encouraçados, desferindo machadadas a torto e a direito, mas os ouriços-do-mar simplesmente se esquivavam de seus golpes, quase que “dançando” no ar.

    -Ah, entendi. - Disse Madre-Ax – Vou ter que usar a cabeça, né?

       Assim que ela disse isso, um dos Hasturs se chocou contra as costas da cabeça dela, a derrubando.

    Madre-Ax podia jurar que ouviu um som parecido com risadas.

    -Seus pestinhas… - Bravejou ela ao se levantar.

    Um dos ouriços começou a concentrar energia pra disparar mais um tiro de laser; o outro monstro fechou o olho e avançou contra Madre-Ax, que rebateu o Hastur com seu machado, mas não conseguiu acertar o outro monstro, como pretendia.

    -Merda! - Gritou ela. - Bem que podiam ensinar baseball nas aulas de educação física!

    Enquanto a heroina resumungava, o segundo olho voador terminou de carregar seu disparo de energia.

    -Eita, caralho! - Ela imediatamente saltou pro lado pra desviar daquele golpe. O chão era obliterado conforme o raio laser fazia sua trajetória, mas imediatamente se reconstruía sozinho.

    O ouriço-do-mar anterior, que havia sido rebatido, começou a carregar seu laser. O que havia recém disparado se jogou contra Madre-Ax dessa vez, que novamente se defendeu com seu machado.

    Entendi o padrão.”, pensou ela.

    O ouriço avançou contra Madre-Ax novamente; ao invés de bloquear, Madre-Ax dessa vez esquivou e imediatamente saltou contra o Hastur que estava parado no ar, dando-lhe uma machadada.

    O golpe não foi o bastante pra quebrar a carapaça do monstro, mas ao menos serviu pra mantê-lo a uma altura alcançável.

    Machadada atrás de machadada, Madre-Ax finalmente deu um golpe capaz de penetrar a couraça do inimigo, prendendo-o à lâmina.

    Ao se virar, Madre-Ax viu que o outro Hastur já estava terminando de carregar seu disparo de luz.

    A heroína correu o mais rápido que pôde até o inimigo, com o outro ouriço ainda preso em seu machado.

    O disparo foi iniciado, mas Madre-Ax já estava perto o bastante pra acertar o olho do Hastur usando o outro ouriço que carregava, dissipando ambos em fumaça roxa.


*

    Semreh deu um soco no “rosto” de um dos homúnculos, jogando-o no chão, mas a pessoa sem face imediatamente se levantou.

    Bem que o Marcos disse que os homúnculos estão ficando mais fortes”, pensou Semreh. “Com a forma Cocytus, um soco já tinha que ser o bastante pra acabar com eles.

    Eram cinco contra um. Semreh não conseguia decidir se continuava ali ou se levava a luta pra um lugar aonde pudesse lutar com mais liberdade, porém correndo o risco de ser cercado.

    Ele não teve muito tempo pra pensar, no entanto, já que um dos homúnculos saltou em sua direção usando o ombro de outro como trampolim.

    O homúnculo deu uma cambalhota no ar e terminou com uma voadora, que Semreh bloqueou cruzando os braços em forma de “X” na frente de seu rosto. Foi uma reação improvisada, Semreh ainda estava transtornado demais com o aumento de força dos homúnculos pra se lembrar do seu treinamento.

    O homúnculo da voadora saltou pra trás, abrindo caminho pra que outro viesse com um soco em direção a Semreh, que respondeu com um chute frontal no estômago do pseudo-humano.

    Outro homúnculo saltou contra Semreh pela lateral pra lhe dar uma cotovelada, mas Semreh Cocytus o agarrou e o jogou contra o homúnculo que levou o chute, que já havia se recuperado do golpe.

    E assim se seguiu. Semreh ficou constantemente atirando os homúnculos uns contra os outros, que sabiam aproveitar o espaço limitado em que se encontravam.

    O cortisol vai bater antes de eu cansar eles a tempo pra atacar

    Foi então que Semreh teve uma ideia: Ele não sabia quais as consequências, mas tinha que arriscar.

    Ele se encolheu como uma “tartaruga” no chão, e procurou espalhar energia por todo o seu corpo.

    Os homúnculos simplesmente atacaram sem pensar, todos ao mesmo tempo.

    No instante em que o primeiro deles encostou em Semreh, houve uma explosão que destruiu as paredes próximas e um pedaço do teto, além de uma cratera no chão. Todos esses estragos foram imediatamente reparados, mas uma coisa não se reparou: Os homúnculos. Eles estavam nus (embora não tivessem genitálias nem mamilos) e com muitas feridas pelo corpo, além de mal conseguirem se manter em pé.

    Semreh aproveitou esse momento de fraqueza e um a um golpeou os homúnculos, que se transformaram em fumaça com um único acerto.


*

    -Cê tá bem, Semreh? - Preocupou-se Madre-Ax.

    -Tô sentindo umas pontadas no peito, mas nada que não dê pra suportar. -Respondeu o guerreiro preto e roxo.

    -Tem certeza?

    -Vamos logo atrás do Maurício.

    -Tá bem… - Madre-Ax ficou desconcertada.

    Ela então acionou o comunicador do seu relógio.

    -Lúcia, mete bala.

    O teletransporte foi acionado.


*

    O grifo branco voava pelo céu roxo de Ponta de Faca.

    Maurício amava aquela sensação; o vento batendo na sua cara de pássaro e a sensação de poder ir aonde quisesse lhe enchia de alegria.

    Será ainda melhor quando vencermos o Jogo Sagrado”, pensou ele.

    Mas de repente Semreh Cocytus e Madre-Ax surgiram do nada e atacaram o grifo em pleno vôo: Madre-Ax com uma machadada e Semreh com um tegatana explosivo que jogou os três direto pro chão, caindo em uma quadra de esportes.

    -Deixa eu adivinhar, - disse o grifo, se levantando e se limpando da poeira – aquilo que você disparou em mim foi algum tipo de rastreador, estou certo?

    -Bingo! - Respondeu Madre-Ax, apoiada no machado.

    -Você vem com a gente! - Semreh disse mais uma vez.

    O grifo branco riu.

    -Eu ia falar “me obriguem”, mas já é o que vocês têm em mente. Pois muito bem.

    Maurício avançou contra Madre-Ax, mas antes que pudesse arranhá-la, Semreh agarrou seu braço de águia, e jogou o grifo no chão. Enquanto o guerreiro preto e roxo torcia o braço de Maurício, Madre-Ax aproveitou pra dar uma machadada no grifo branco.

    Maurício gritou de dor, mas conseguiu se soltar, arranhando Semreh com suas asas e pés de leão.

    Eles estão se aperfeiçoando cada vez mais”, pensou o grifo, “Isso é ótimo, mas eu quero viver pra ver o resultado disso

    Naquele momento, um míssil foi disparado na quadra, atingindo Semreh Cocytus e Madre-Ax de surpresa.

    Os dois foram arremessados pela força da explosão e ainda sofreram com o impacto com o solo.

    -Esse seu novo truque saiu pela culatra. - Tentou brincar Madre-Ax, se levantando com dificuldade.

    -Agora não é hora pra isso. - Retrucou Semreh, que conseguiu se recuperar mais rápido.

    Quando a poeira abaixou, Semreh e Madre-Ax tiveram outra surpresa: Diante deles, junto de Maurício, estava uma outra criatura; tinha uma aparência agradável demais para ser um Hastur, mas ainda assim foi inusitada o bastante para desconcertar os herois.

    Era uma espécie de coelho cinza, mas seu corpo tinha formato humanoide e era do tamanho de uma criança humana.

    Além disso, também trajava um vestido verde.

    -Eu quero brincar também! - Disse a criatura, com voz de uma menininha.

    -O que diabos é isso?! - Indignou-se Semreh.

    -Ah, Marie, você já acordou! - Alegrou-se Maurício, retornando à forma humana.

    -Pessoal, essa é a Marie. - Disse o rapaz de terno – Era nela que eu estava trabalhando quando vocês apareceram. - O sorriso de Maurício parecia largo demais.

    -São esses os meus “avidersários” no Jogo, papai? - Perguntou a coelha.

    -Esses mesmo, Marie. - Respondeu Maurício, fazendo um cafuné em sua criação. - Mostre-me do que você é capaz.

    -Eba! - Alegrou-se Marie, que imediatamente avançou contra os herois.

    Marie foi imediatamente sobre Madre-Ax, que não fez nada pra se defender do drop kick da pequena, sendo lançada até o gol da quadra.

    -Êêêêê! - Comemorou a menina coelho, saltando e esticando os braços.

    -Cacete, Madre-Ax! - Bravejou Semreh, ajudando a amiga a se levantar – Por que você não se defendeu?

    -É uma criança!

    -Uma criança que dispara mísseis!

    Semreh Cocytus não esperou uma resposta, já foi correndo contra Marie pra dar uma bicuda naquela pirralha.

    No entanto, quando seu pé estava pra encostar na coelha humanoide, Marie correu sobre a perna de Semreh pra alcançar seu rosto e chutá-lo ela própria. Semreh, por sua vez, agarrou a perna da inimiga e a “martelou” no chão.

    Madre-Ax de início ficou horrorizada com aquilo, mas sua opinião mudou de imediato quando um dos braços de Marie se abriu em um canhão e disparou um míssil contra Semreh, que estava preparado dessa vez e conseguiu resistir melhor à explosão.

    Focando-se no fato de que Marie era uma criatura criada de maneira semelhante aos Hasturs, a guerreira vermelha e prateada correu até a coelha com o seu machado e desferiu machadada atrás de machadada.

    Madre-Ax sentia um aperto no peito horrível ao fazer aquilo, mas entendia que era necessário.

    Semreh também aproveitou pra pisotear Marie entre as machadadas de Madre-Ax.

    Observando à distância, Maurício se divertiu com a cena dos herois descendo a porrada em uma criança.

    O linchamento infantil terminou quando Marie tirou sua carta da manga: Uma couraça mecânica, semelhante a de um tanque de guerra, revestiu seu corpo, fazendo o machado de Madre-Ax ricochetear.

    Marie também ficou muito mais rápida; em questão de segundos, a coelha mecânica conseguiu golpear Semreh Cocytus e Madre-Ax forte o bastante ao ponto deles se destransformarem.

    -Mas que porra aconteceu aqui? - Perguntou Ana, caída no chão.

    -Ganhei! Ganhei! - Comemorou Marie, de volta à sua aparência orgânica. - Eu ganhei, papai! - Disse ela correndo pros braços de Maurício.

    -Acredito que podemos ficar por aqui. - Comentou Maurício, segurando Marie no colo. - Nos vemos novamente, se cuidem.

    O rapaz então abriu suas asas e ergue vôo, carregando sua criação.


***

    -Cadê o Marcos? -Perguntou Lúcia ao chegar em casa. Foi muito humilhante os seus agentes terem perdido pra uma pirralha, que ainda por cima foi construída com elementos de sua própria pesquisa! Maurício estava fazendo de tudo pra tirar Lúcia do sério; tudo o que ela queria naquele momento era jogar um pouco de koi-koi com o seu irmão pra desestressar.

    -Ele disse que ia dar uma saída – Respondeu o pai da moça, sem tirar os olhos do livro que estava lendo.

    -Quê?!- Foi tudo o que Lúcia conseguiu dizer.

    Ela então foi até a janela, e contemplou o domo roxo que encobria Ponta de Faca; também pairou seu olhar sobre aquele portal dourado de onde o Rei Amarelo havia saído.

    O coração de Lúcia se contorceu de preocupação: Com a cidade naquele estado, aonde seu irmão poderia ter ido?

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