Cidade Amarela, capítulo 1

 

    Noite de sábado num armazém abandonado em Ponta de Faca, a cidade dos ipês amarelos. Havia uma multidão reunida em volta de um grande retângulo vermelho marcado no chão, assistindo a dois homens lutarem dentro de seu espaço.

    Um deles estava em sua quinta luta consecutiva naquela noite, tendo derrotado todos os outros participantes.

    Porém, cedo ou tarde a fadiga chega pra todos.

    -Até que enfim – Comentou Marcos na plateia, quando Douglas pediu água – Já tava achando que ele ia deixar o cara quebrar o braço dele. - E deu outra mordida em seu churro.

    Lúcia jogou uma toalha para Douglas, que enxugou o rosto com o braço ileso.

    -Foi um ótimo espetáculo – Comentou a moça, tentando soar o menos sarcástica possível – Não pude deixar de notar que você parecia sentir prazer em ferir seus oponentes.

    Após tomar um gole de sua garrafa d’água, acrescentou:

    -Você vem pra cá satisfazer algum impulso sociopata de uma maneira mais ou menos socialmente aceita, é isso?

    -Mais ou menos. - Respondeu Douglas, massageando o ponto do braço aonde sofreu a chave – A gente pode falar disso em outro lugar. Não tenho mais o que fazer aqui.


*

    Os três reuniram-se no prédio da Kegareshi, que agora também era a nova casa de Douglas.

    Estavam sentados no chão do dormitório do rapaz, que falava um pouco mais de si.

    -… Então essas lutas underground são o jeito que eu encontrei de descontar a minha raiva e de ficar mais forte pra encarar o meu pai.

    -Boto fé. - Comentou Marcos – O Alexandre me falou umas coisas de você; se meus pais de sangue tivessem sido uns arrombados igual o seu eu também iria querer arrebentar eles.

    Douglas sorriu. Era sempre bom estar com alguém que o entendesse.

    -Já que nenhum de nós pretende dormir tão cedo… - Disse Lúcia, se erguendo – Douglas, você me autoriza a te examinar? - E então, com um pingo de malícia, acrescentou: -Prometo que não violarei seus direitos humanos.

    Marcos riu, mas ao ver a cara que Douglas fez, falou:

    -Relaxa, cara; é tudo tranquilo. Ela só gosta de assustar os outros mesmo.

    -Hmmm… - Douglas refletiu. Eles estavam enfrentando o mesmo inimigo, e Lúcia deu a ele um teto pra dormir depois que ele abandonou seu antigo apartamento; era o mínimo que ele poderia fazer.

    -Tá bem.


*


    -Como vocês conseguiram essa máquina de ressonância? - Perguntou Douglas, já deitado de costas dentro do aparelho. Ele podia jurar que sentia uma espécie de “força” invadindo seu corpo. Toda ressonância magnética era assim?

    -Minha família tem contatos. - Respondeu Lúcia. A família Nakajima era dona de uma fábrica de peças pra todo tipo de maquinário, aquilo não deveria ser uma surpresa.

    Tudo o que Douglas via era o interior do túnel branco em que estava, mas era possível ouvir Lúcia apertando teclas num ritmo frenético. Tectectectectec….

    -Diga-me, Douglas – Dessa vez foi Lúcia quem puxou assunto – Como você conseguiu o seu poder? Marcos, larga isso! Parece criança!

    -Foi na época da faculdade. Um conhecido me convidou a participar de uma espécie de ritual de alquimia junto com a Ana.

    Tectectectectectec…

    -Como era esse ritual? - Perguntou a cientista.

    -Não tenho ideia. A gente tava em transe.

    -E você aceitou participar de boa?! - Marcos se indignou.

    -A gente era amigo na época. Graças a ele meu pai ficou menos escroto comigo naquele tempo, o que parando pra pensar não quer dizer muito.

    Tectectec… tec… tectec

    -Pronto. - Comentou Lúcia, que acionou o botão para tirar Douglas de dentro do aparelho.

    Ela voltou para o monitor e disse:

    -Você falou em alquimia, correto? O sistema de fato identificou propriedades transmutativas em sua alma, como se ela fosse uma espécie de “pedra filosofal” pro seu corpo.

    -Você viu isso pelo computador?! Mas como?! - O espasmo causado pelo susto fez o braço de Douglas latejar.

    -Bruxaria não é exclusividade dos ocidentais, querido. - Lúcia parecia se gabar, mas Douglas notou algo parecido com medo em seus olhos. O afago que Marcos deu no ombro dela também chamou atenção.

    Um alarme tocou.

    -O que é isso?! - Douglas se assustou mais uma vez.

    -É o alarme anti-Hastur! - Explicou Marcos, já correndo pro teletransporte – Vambora, Lúcia! Vai ser com a Ana ou o Alex?

    -Não, eu enfrento ele. - Respondeu Douglas – Pode descer.

    -Tem certeza? - Perguntou Lúcia, já estudando os dados na tela do computador de batalha. - Não acha que lutou o bastante por hoje?

    -Quero minha “revanche”. - Douglas apenas massageou o braço e subiu na plataforma.

    -Valeu, cara! - Um sorriso enorme se apoderou do rosto de Marcos. Ele não fazia a menor questão de esconder seu alívio.

    Douglas se transformou em Semreh.

    -Vamos logo com isso. - Disse o guerreiro azul.


*

    Semreh foi transportado para uma sala de cinema. Haviam corpos mutilados por toda a parte; homens, mulheres e crianças destroçados por garras ou mordidas. Ele não pôde dexar de notar os corpos de policiais militares que pareciam ter sido mortos com socos.

    -Foram os homúnculos que fizeram isso?

    As aberrações pareciam ter deixado a sala, então Semreh resolveu fazer o mesmo. Porém, mal ele se virou em direção à escada e já levou uma rasteira, derrubando-o: Haviam homúnculos escondidos entre os corpos! Assim que ele caiu no chão, os homúnculos se ergueram do meio dos restos mortais e começaram a pisotear Semreh.

    Gatilhos de um passado doloroso” se apossaram da mente de Semreh, que incendiou a si próprio com o fogo azul e destruiu todos aquelas pessoas sem rosto de uma só vez com um sabre de mão giratório.

    -Droga, eles estão mais fortes. - Comentou ao desativar o fogo, fazendo a temperatura da sala subir de volta ao normal.


    Após sair do cinema, Semreh seguiu o rastro de pessoas fatiadas ao meio pelo shopping. Aquilo não parecia obra de um dos lobisomens.

    E de fato não era.

    Um daqueles Hasturs vivos o esperava no final do corredor.

    Era uma espécie de besouro-rinoceronte em formato humanoide, com dois braços e duas pernas; além disso, ele tinha um par de cimitarras ensanguentadas no lugar de mãos.

    Também havia o rosto.

    Um rosto desconfortalvemente parecido com um rosto humano, trancado em um permanente sorriso de escárnio.

    Semreh sabia que era uma provocação, um convite pra dar o primeiro golpe, mas aquilo era muito a cara do pai, não tinha como resistir.

    Mesmo dolorido, Semreh avançou contra o inseto, preparando um soco.

    O Hastur contra-atacou com uma de suas lâminas, indo cortar o braço do oponente, mas Semreh agarrou-o com a mão livre e então jogou o monstro contra o vidro de uma loja, o fazendo bater a cabeça no balcão.

    Semreh se jogou contra o monstro caído e começou a socar seu rosto furiosamente, um rosto que de alguma maneira lembrava muito o de Igor.

    A raiva porém se transformou em frustração ao invés de catarse, já que aquele sorriso maldito não saía da cara do monstro, que aproveitou pra desferir um corte em Semreh, e com suas asas impulsionou uma cabeçada contra o heroi, o impacto do chifre chegando a trincar seu visor.

    O desnorteamento causado pela dor pontiaguda cessou rapidamente quando uma memória de um final de semana inteiro trancado dentro de um armário fez Semreh recuperar a sobriedade.

    Mas antes que ele revidasse, várias tiras grudentas e que ardiam ao toque se enrolaram em seus braços e pernas e então se fincaram no piso. Eram as línguas de um lobisomem, de tocaia na loja ao lado oposto.

    Semreh não gostou do que viu à sua frente: O Hastur besouro posicionou suas cimitarras em forma de “X” na frente do chifre, ao mesmo tempo em que encolhia os joelhos. Aquilo era claramente uma preparação pra um golpe finalizador.

    O inseto disparou contra Semreh, que conjurou quantidade suficiente do fogo frio pra ser capaz de romper suas amarras, então agarrou o lobisomem pela língua e o usou como maça, lançando o Hastur vivo contra o teto.

    O impacto foi o suficiente pra destruir o lobisomem, mas o besouro continuou inteiro, ainda que preso no alto do andar.

    Copiando seu oponente, Semreh impulsionou as pernas e, conjurando fogo azul, deu um salto que o fez atravessar o teto, destruindo o monstro e parando no andar de cima.

    Ao se destransformar, Douglas foi tomado por cãimbras terríveis, causadas pelo uso do fogo sobrenatural.

    Com esforço, ele sacou seu celular.

    -Operação… ugh… concluída.

    Douglas foi imediatamente transportado de volta pra Kegareshi, graças a melhorias no teletransporte.


*

    -Você é doido. - Douglas ouviu Marcos dizer.

    Douglas estava mais uma vez deitado em sua cama, o menor movimento que realizasse lhe enchia de dor. Até mesmo falar e respirar era difícil, embora ele procurasse não demonstrar isso para Marcos e Lúcia.

    -Sei que você está precisando de descanso – disse a moça, acionando o gravador do seu smartphone e sentando próxima à cama de Douglas -, mas eu preciso que você me explique como seu poder te machuca assim. Pode até te ajudar a longo prazo.

    Douglas virou a cabeça para encarar Lúcia, que o olhava com uma expressão ao mesmo tempo curiosa e distante. Ele se sentiu mais como uma cobaia do que quando estava sendo examinado na máquina.

    -Já faz um tempão que o Maurício me explicou… mas é algo tipo… a alma se divide em três, *arf*, partes… uma é o “corpo”, aí tem o “sangue” e outra que é… sei lá, o núcleo.

    Douglas parou pra descansar.

    -O “Semreh”… - Ele continuou – É o corpo da alma em forma física…

    -Cara, você não tá legal. - Interrompeu Marcos – Lúcia, você pode perguntar isso outra hora.

    -Tudo bem. -Disse Douglas – Então eu uso o “sangue” pra invocar o fogo azul… mas isso machuca meu corpo de verdade.

    -Ok, é o bastante. - Falou Lúcia. - Obrigada pela cooperação. Pode descansar agora.

    Lúcia saiu do quarto, Marcos logo em seguida.


*

    -E aí, vai fazer o quê agora? - Perguntou Marcos, já sonolento por causa dos antidepressivos.

    Lúcia estava de volta ao computador, inserindo mais dados no sistema.

    -Vou checar se nossos contatos na França concordam em fornecer armamento anti-Hastur pra PM daqui. Depois, tornar o Douglas mais eficiente.

    -Tomara que dê certo. Vou dormir aqui na Kegareshi mesmo. - Respondeu Marcos, dirigindo-se ao seu dormitório.

    Lúcia ficou encarando seu pulso com cicatrizes, então voltou os olhos pra tela do computador, cujas propriedades mágicas eram abastecidas por sangue.

    Um novo passo foi dado pra descobrir a origem da catástrofe. Conhecimento é poder, e com esse poder o futuro terrível que ela vislumbrou tempos atrás seria abortado.

    Sua coluna estremeceu ao lembrar.

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