Cidade Amarela, capítulo 2

 

    Em seu dormitório no prédio da Kegareshi, Douglas meditava. Ele estava sentado na posição de lótus sobre sua cama e recitava o mantra Nam-Myoho-Renge-Kyo repetidamente.

    Lúcia lhe havia dito que esse método daria mais poder à sua alma, de modo que ele não dependeria tanto do fogo frio.

    E de fato, Douglas era capaz de sentir algum progresso. O método que lhe foi ensinado ainda pequeno consistia em simplesmente deixar os pensamentos e emoções fluírem, aceitá-los. Coisa que não era nada fácil, já que sua mente lhe transmitia dor; uma dor muito mais intensa do que qualquer uma que tenha sentido nas lutas improvisadas ou no combate aos Hasturs.

    Esse novo método, chamado “daimoku”, lhe dava controle sobre a própria cabeça, além de fornecer clareza e propósito. Era realmente muito empoderador.

    Toc toc

    Lúcia bateu na porta.

    -Preciso de você na sala principal. Vista algo apresentável.

    Douglas até achou bom ser interrompido: Se deixassem ele teria passado o dia inteiro meditando.

    Seu quarto era pequeno e sem janelas; apenas um relógio digital na parede oposta à sua cama lhe indicava se era dia ou noite, cedo ou tarde. O piso e paredes super brancos o faziam se sentir num hospital, ou talvez até num hospício, o que seria bastante apropriado.

    Vestiu suas roupas habituais; jeans e camiseta azul com jaqueta preta.

    Saiu pela porta.


*


    Na sala principal estavam reunidos Lúcia, Ana e Alexandre.

    -Porra, demorou hein? - Comentou Ana, irreverente – Quis quebrar o estereótipo de que homem se arruma rápido?

    Douglas riu de leve. Era muito bom ter a companhia dela de novo.

    Ao lado de Ana estava Alexandre, seu antigo colega de escola. O cara mudou muito desde aquele tempo.

    Mas Douglas deu por falta de alguém.

    -Cadê o Marcos?

    -Cuidando de assuntos pessoais. - Respondeu Lúcia.

    Ela continuou:

    -Preciso que vocês investiguem o campus aonde estudaram; deve haver algo de útil por lá. Alex, vou ficar no computador a todo momento; se surgir algum problema, te envio a Chevielier imediatamente.

    -Entendido.

    Lúcia se dirigiu aos controles do teletransporte.

    -E então – Disse ela com um sorriso maldoso – Quem quer “virar mosca” primeiro?


*


    Douglas, Ana e Alexandre foram transportados para a entrada da Universidade Kumã, que levava o nome do rio que contornava Ponta de Faca.

    Um dos policiais militares montando guarda levou um susto, mas manteve o posto.

    Alexandre notou que as armas que eles empunhavam eram as mesmas de quando ele serviu na Legião Estrangeira. Isso até que era bom, mas não estariam ultrapassadas?

    -Nossa, bateu uma puta nostalgia agora! - Comentou Ana com um largo sorriso ao entrarem nas instalações do campus.

    -Pois é, até que teve momentos bons. - Concordou Douglas, observando as flores amarelas de ipê espalhadas pelo chão.

    -O que vocês cursaram? - Indagou Alexandre, curioso. Ele não estava querendo puxar conversa: É importante promover a camaradagem entre guerreiros pra levantar o moral da equipe.

    -Eu fiz Música. - Respondeu Ana enquanto caminhavam – E o Douglas fazia Medicina.

    -Medicina?

    -Todo mundo estranha – Admitiu Douglas – Passei em último lugar no vestibular, mas passei.

    -O importante é passar. - Comentou o soldado.

    -É, mas eu não cheguei a concluir. Acabei largando a faculdade.

    -Imagino…

    O trio continuou caminhando até passar por uma sala que chamou a atenção de Douglas.

    -Tá lembrada disso, Ana? - Perguntou Douglas.

    -Puta merda, já tinha até esquecido! Saporra voltou como um flash pra minha cabeça agora!

    -O que é? - Alex quis saber.

    -O laboratório aonde a gente conseguiu nossos poderes. -Respondeu a musicista, de repente séria.

    O trio passou pelos PMs em frente àquela sala e entraram. Convenientemente, as últimas pessoas no laboratório já estavam de saída.

    -Deve ter algo aqui. -Supôs Douglas – Maurício costumava deixar as coisas dos rituais pra poupar tempo carregando.

    -Maurício… - A voz de Ana soava como um misto de tristeza e decepção – Por que ele tá fazendo essa merda? Ele sempre foi tão legal.

    -Meu pai deve ter feito a cabeça dele. - Respondeu Douglas, vasculhando os armários e gavetas – Achei!

    Ana e Alexandre correram até onde Douglas estava.

    Era um caderno com anotações em uma língua estranha. Haviam ilustrações de Semreh, Madriax, homúnculos, Hasturs, etc.

    Mas o que mais chamou a atenção dos três foi um desenho do que parecia ser uma pessoa vestindo um manto encapuzado amarelo e usando uma máscara branca sem qualquer feição além dos buracos pros olhos.

    -Lúcia com certeza vai gostar disso. - Comentou Alexandre.

    Assim que disse isso, a armadura Chevielier surgiu em volta de seu corpo.

    Também dava pra ouvir tiros no lado de fora.

    -Apareceu um Hastur! - Avisou Lúcia pelo comunicador – Também está havendo um ataque de homúnculos em outra área da cidade; me focarei em ajudar o Marcos a lidar com eles. - Encerrou a transmissão.

    Um daqueles lobisomens cadavéricos entrou quebrando a porta. Muitos de seus olhos foram estourados, e ele estava repleto de marcas de bala; porém, suas garras e presas estavam encharcadas com o sangue de policiais.

    Chevielier instintivamente avançou contra o monstro. Ele já estava farto dessa desgraça.

    O soldado cibernético socou com toda sua força uma das bocas do monstro, que embora tenha perdido dentes revidou com uma patada que lançou Chevielier contra a parede oposta.

    Douglas se jogou contra Ana para tirá-la da trajetória do “projétil”.

    -Você está bem? - Perguntou o rapaz, ainda por cima dela.

    -Na próxima vez você pode ser menos bruto. - Brincou Ana.

    Douglas riu, então ajudou Ana a se erguer.

    Ambos então se transformaram em Semreh e Madriax.

    -Chevielier, tudo certo aí? - Perguntou o guerreiro azul.

    -Vão precisar de mais do que isso pra me derrubar. - Respondeu Chevielier, limpando restos de concreto da armadura enquanto se levantava.

    Como se tivesse entendido o que foi dito, o lobisomem expeliu fumaça roxa, que se solidificou na forma de homúnculos.

    -Saporra tá ficando cheia já. - Madriax apertava seu bastão com as duas mãos, apreensiva.

    -Tive uma ideia – Disse Chevielier.

    A ideia do veterano de guerra era simples, mas eficaz: Usar o fogo azul de Semreh pra energizar a forma laranja de Madriax e assim abrir caminho à força.

    E foi o que fizeram. Nenhum inimigo foi destruído na investida, mas pelo menos agora o trio poderia lutar com mais liberdade.

    Estavam todos em uma área aberta do campus, repleta dos icônicos ipês de flor amarela (embora as de algumas árvores já tivessem caído).

    O lobisomem se recuperou rapidamente e esticou suas nove línguas contra o trio de herois, mas disparos de balas as interceptaram.

    Eram os PMs que, com suas metralhadoras anti-Hastur importadas da França, conseguiram impedir que os membros da Kegareshi fossem atacados.

    No entanto, mal fizeram isso, as pessoas sem rosto comandadas pelo monstro semi-morto-vivo avançaram sobre os policiais pelos flancos e quebraram suas costelas com socos e chutes, assim perfurando seus pulmões e os matando ali mesmo.

    Antes que qualquer um dos herois pudesse comentar a respeito, um segundo lobisomem saltou sobre Semreh, que com seus reflexos sobrehumanos agarrou uma das patas do bicho, deu um giro e o lançou na direção do outro monstro, que esquivou.

    -Mas daonde é que saiu isso?! - Berrou Semreh, ainda se recuperando do susto.

    Mas não parou por aí: O segundo lobisomem uivou, expelindo fumaça roxa da sua miríade de olhos…

    -Argh, mais homúnculos. - Reclamou Chevielier.

    Não eram homúnculos.

    Em vez disso, a fumaça se solidificou na forma de uma naja gigante, de dorso humanoide e braços que terminavam em outras cabeças de najas ao invés de mãos.

    Outro Hastur portador da vida.

    A aparição daquela criatura intimidou os três herois de uma maneira que nem eles conseguiram entender; era como se eles tivessem inconscientemente aceitado o papel de presa, seus corpos paralisados esperando pelo bote.

    Os inimigos logo se aproveitaram da condição dos herois e atacaram: Os homúnculos, que eram cinco, avançaram sobre Chevielier; como Madriax estava na corpulenta forma laranja, os dois lobisomens fizeram a investida sobre ela juntos.

    Semreh conseguiu sair do transe antes de ser atingido por um dos punhos-boca da naja; ele se esquivou do soco-mordida, agarrou o braço do monstro e então fez um giro pra que a cauda do Hastur batesse tanto nos homúnculos quanto nos lobisomens, dispersando-os de seus amigos.

    -Muito bom, Semreh. - Chevielier havia recuperado os sentidos – Sua mente conseguiu superar a tática inimiga. Você daria um ótimo soldado.

    -Valeu. Deve ser a meditação. - E então, virando para a amiga, perguntou: -Tudo bem aí, Madriax?

    -Meio dolorida, mas acho que nada grave – Embora Madriax, principalmente a forma laranja, fosse mais resistente que a armadura Chevielier, ela tinha a desvantagem de sentir na pele a dor dos golpes inimigos, já que era parte de Ana.

    Semreh conjurou seu fogo frio e encostou a mão em Madriax.

    -Se transforme na forma azul e nos dê cobertura. - Ordenou.

    Madriax assim o fez, e, no momento em que se transformou, saltou para o teto de uma das instalações do campus e começou a disparar contra os homúnculos.

    As pessoas sem rosto até tentaram desviar dos tiros, mas Madriax era mais rápida.

    Em pouco tempo, todos foram destruídos.

    Um dos lobisomens esticou suas línguas em direção a Madriax, mas Semreh as agarrou antes de alcançarem o alvo e, mesmo com as mãos ardendo por causa da saliva ácida, fez um giro e lançou a fera contra o Hastur vivo, que conseguiu se esquivar não só do companheiro arremessado, como também dos tiros de Madriax, graças a seus movimentos sinuosos.

    Madriax saltou do telhado e começou a disparar contra o outro lobisomem, para auxiliar Chevielier.

    Então, ainda em plena queda, ela retornou à forma verde e bateu com o bastão na cabeça da cobra, desnorteando-a por um tempo.

    -Vai atrás daquele! - Berrou a heroina para Semreh ao atingir o chão – Eu e o Chevielier cuidamos desses dois!

    Mal Madriax falou isso, Chevielier arrancou a cabeça do outro lobisomem com uma torção de pescoço, a espinha dorsal saindo como uma minhoca. Logo, tudo se dissipou em fumaça roxa.

    Vendo que seus amigos pareciam dar conta da situação, Semreh correu atrás do lobisomem que havia lançado.

    -Pronto, “Robocop”? - Madriax estava com a guarda alta, segurando seu bastão.

    -Treinei pra isso, “gilete”. - Chevielier brincou de volta.

    A naja avançou sobre os herois, atacando Chevielier com suas bocas ao mesmo tempo em que chicoteava Madriax com a cauda.

    Madriax se defendia batendo de volta com o bastão, até que o Hastur enrolou a cauda pra tirar o bastão da guerreira e o jogar no estacionamento da faculdade, quebrando o vidro de um carro.

    Chevielier teve mais sorte: Agarrou os dois braços do monstro com uma mão e socou os cotovelos com a outra, desmembrando a fera.

    Tanto a cabeça do corpo principal quanto a dos braços guincharam insuportavelmente de dor, com algo que parecia ser “sangue verde” sendo esguichado dos ferimentos.

    Por um momento, por um breve momento, Chevielier chegou a sentir pena daquela criatura.

    Decidiu então pôr fim ao seu sofrimento.

    Ele pressionou um dos botões que Lúcia e Marcos adicionaram à armadura, pra que assim o portador pudesse “conjurar” o equipamento desejado sem depender do auxílio da cientista.

    A pistola “finalizadora” se materializou na mão direita de Chevielier, que imediatamente disparou contra o Hastur.

    A cobra soltou um grito agudo e recuou poucos metros devido ao impacto, mas não foi destruída.

    Além disso, os dois braços arrancados se tornaram eles próprios cobras gigantes, embora menores que a principal.

    Ah, droga!”, pensou.

    A pistola possuia apenas uma única bala, e como se isso não bastasse, o braço direito da armadura foi inutilizado pelo recuo do disparo.

    Felizmente, Madriax retornou à tempo, batendo com seu bastão nas cobras menores assim que deram o bote em Chevielier.

    Com o braço esquerdo, Chevielier apertou outro botão na armadura, “conjurando” seu facão para a mão esquerda (o que não era um problema, já que a armadura o tornava ambidestro).

    - Se transforme no modo laranja – Disse ele enquanto fatiava os “braços-cobra”, finalmente dissipando-os em fumaça roxa – Vamos precisar da força adicional!

    -Manenfodendo! - Respondeu Madriax – Saporra de mudança chupa minha força se eu não tiver ajuda do Semreh!

    Ela então avançou contra a naja gigante, que tentou arrancar o bastão mais uma vez com a cauda, mas Madriax o lançou para o alto, tendo seu braço agarrado no lugar.

    Madriax então aproveitou o puxão inimigo pra saltar, pegar o bastão em pleno ar, e, conforme caía em direção ao Hastur, ativou a furadeira de energia de sua arma e a enfiou profundamente pela garganta da cobra, destruindo-a e dissipando-a em fumaça roxa.

    Ao se destransformar, a pressão de Ana baixou, mas ela teve forças pra se recobrar.

    -Bora ver se aquele caderno bisonho não foi destruído nessa merda toda – Disse a moça voltando pro laboratório. Então, com uma mão sobre o ombro de Chevielier, falou:

    -Não precisa se preocupar com o Douglas. Ele sabe se cuidar.


*


    Após o embate, Douglas, Ana e Alexandre foram transportados de volta para o prédio da Kegareshi.

    Estavam os três juntos de Lúcia e Marcos na sala de reuniões, sentados em torno de uma mesa redonda.

    -Consegue traduzir, Lúcia? - Perguntou Douglas, a respeito do caderno, no centro da mesa.

    -Não sou formada em Linguística. - Respondeu, seca – Mas verei o que minha família pode fazer. - Lúcia descruzou os braços e perguntou: -Mas e você, Douglas? O que sabe sobre isso?

    -Bom, o Maurício apareceu no meu antigo apartamento uma vez, falando de um “novo projeto”… - Ele então folheou o caderno até as páginas com as figuras de Semreh e Madriax -Mas não consigo imaginar o que Ana e eu temos a ver com isso.

    -”Novo”? - Estranhou Ana -Então o que caralhos a gente fazia no tempo da faculdade, “matando” aqueles Hasturs zumbis?

    -O que são os Hasturs, falando nisso? - Perguntou Alexandre -Nunca recebi essa informação quando servi na Legião Estrangeira.

    Todos os olhos se voltaram para Douglas.

    -Tudo o que eu sei – Começou o rapaz -É que eles são uma tentativa de imitar umas criaturas que um colega maçom do meu pai chamava de “Os Verdadeiros Donos do Planeta”. -Douglas fez uma pausa, então continuou: -Esses Hasturs vivos, na teoria, possuem alma, então seriam uma cópia mais aproximada, eu acho.

    -Seu pai é da Maçonaria? - Lúcia ergueu uma sobrancelha, interessada.

    -Era. Foi expulso por ter jogado um tijolo na cabeça do Grão-Mestre.

    -Ah sim.

    -Beleza, e o que é que a gente faz agora? - Perguntou Marcos, com o olhar aborrecido e o rosto apoiado em uma das mãos.

    -Matar o meu pai. - Respondeu Douglas, firme.

    -QUÊ?! - Todos se assustaram, mas Alexandre foi quem mais se exaltou. -Tá falando sério?! É seu pai, cara! Tem que haver outro jeito!

    -Ué, você não matava gente quando tava na Legião não?

    -Era diferente! Além disso, muitas vezes a gente recebia ordens de capturar os feiticeiros com vida!

    -Eu apoio o Douglas. -Disse Marcos, dessa vez mais interessado na conversa -É melhor ser órfão do que ter um pai como aquele. E se isso fizer com que essa desgraça de Hastur acabe, melhor ainda.

    Todos encararam Lúcia, esperando seu veredito.

    -Vou analisar as opções possíveis e entrarei em contato a respeito da minha decisão. Estão dispensados.

    Alexandre e Ana foram embora do prédio, enquanto Douglas resolveu meditar em seu dormitório.

    -Quando você vai contar a eles sobre o futuro que você viu no celular? - Perguntou Marcos.

    Lúcia encarou as cicatrizes de seu pulso.

    -Não acredito que seja necessário. Quanto menos gente se preocupar com isso, melhor. - Seu rosto exalava angústia.

    -Ok, acho que você tá precisando de mais um chá de camomila. - Marcos se levantou e, quando alcançou a porta, virou-se para Lúcia:

    -O sangue do computador já tá acabando. É pra usar a bolsa com sangue da sua mãe dessa vez, né?

    -Nossa mãe.

    -Ish, foi mal. É que…

    -Tudo bem. Vai fazer o chá. - Lúcia sorria com ternura.

    Assim que Marcos deixou a sala, Lúcia pegou papel e lápis e começou a desenhar um diagrama com as ações que poderia tomar com as informações que possuía.

    Terminado o diagrama, ela encarou o espelho preto de seu smartphone: Infelizmente, o ritual de sangue não lhe informava qual a melhor ação a se tomar; ele apenas mostrava as consequências de não se tormar ação alguma.

    Lúcia puxou e soprou o ar diversas vezes, procurando controlar a respiração e diminuir a velocidade dos batimentos de seu coração, que mais parecia uma britadeira tentando furar seu peito de dentro pra fora.

    Ações estavam sendo tomadas. O futuro seria evitado.

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