Cidade Amarela, capítulo 3

 

    Semreh, Chevielier e Marcos enfrentavam um Hastur em uma das praças de Ponta de Faca. Haviam cadáveres espalhados pela área, tanto de civis quanto de policiais militares; sangue e vísceras enfeitavam o chão.

    As árvores de ipê da praça haviam perdido todas as suas flores, formando um contraste irônico com o Hastur enfrentado: Uma grande e robusta árvore com flores de ipê, mas que também possuía monstruosos braços e pernas, com um olho que se abria no sentido vertical no tronco.

    Marcos mal conseguia ficar em pé: Suado, ofegante, suas manoplas pareciam muito mais pesadas do que eram e o equipamento nas pernas era como um instrumento de tortura medieval trucidando seus membros. Foi difícil, mas com a ajuda dos quatro robôs controlados por Lúcia ele destruiu os homúnculos. O jovem já não aguentava mais, ele só queria que aquilo acabasse pra ele voltar pra casa.

    Chevielier empunhava seu facão com a mão direita, enquanto seu braço esquerdo ficou inutilizado por disparar a pistola finalizadora contra o lobisomem desmorto. Mesmo sendo mais fraco que Semreh, ele estava disposto a ajudar o guerreiro azul no que fosse preciso pra derrotar aquela aberração.

    Semreh insistiu em lutar contra o ipê maligno sozinho, deixando seus companheiros apenas para cobri-lo caso sofresse um revés.

    Aquele Hastur era muito mais forte que todos já enfrentados anteriormente, forçando Semreh a desgastar seu corpo com o fogo azul mesmo com a meditação tendo fortalecido seu traje de batalha.

    Felizmente o esforço rendeu frutos, e Semreh conseguiu combater a “pessoa-árvore” até acabar com as forças dela.

    Só faltava a cereja do bolo.

    Concentrando fogo azul no seu braço direito, Semreh saltou e, aproveitando a velocidade da queda, desferiu um tegatana, partindo a árvore em duas, e reduzindo suas metades em fumaça roxa.

    Semreh se destransformou de volta em Douglas, com cãimbras atacando todo seu corpo.

    Alexandre apertou um novo botão na armadura Chevielier para teletransportá-la de volta ao prédio da Kegareshi. Ele estava aos poucos ganhando autonomia, o que não servia pra aliviar a dor em seu braço esquerdo.

    O equipamento de Marcos foi transportado remotamente por Lúcia. Tomando cuidado pra não pisar nos corpos retalhados das vítimas, ele foi deitar em um banco próximo.

    -Douglas. - Chamou Alexandre, sem transmitir a dor que sentia no braço – Você ainda está com aquela ideia de matar o seu pai?

    -Você já foi literalmente pago pra matar pessoas. - As cãimbras de Douglas já estavam miraculosamente passando – Por que se importa com isso?

    Alexandre ficou um tempo calado, encarando os destroços de corpos no chão.

    -Quando eu entrei na Legião – Começou o soldado, ainda com o olhar baixo – Meus superiores achavam que eu tinha o coração muito mole, - Lágrimas se formavam em seus olhos – então eles me forçavam a matar todo colega que fosse pego desertando, pra me “endurecer”. Sempre que eu fazia aquilo, eu sentia como se uma parte de mim tivesse morrido junto – Alex limpou os olhos – Eu precisei fazer terapia na França quando encerrei meu contrato, pra conseguir voltar a ser uma pessoa funcional. Não quero que você passe pela mesma coisa.

    -Era só o que me faltava! - Esbravejou Marcos, sem virar a cabeça pros outros dois. - Eu digo por experiência própria que família é uma coisa que a gente só dá valor quando perde, mas esse tal de Igor é tudo, menos pai! Um desgraçado desses tinha que ser amarrado num poste e levar paulada pelo que fez com o Douglas, e ainda por cima é por causa dele que os Hasturs estão atacando!

    Douglas olhou pros seus dois amigos, cada um lhe apoiando à sua maneira, e ficou feliz.

    -De qualquer forma, meu pai tem que ser detido. - Disse ele.


*

    Como era sábado, Ana bebericava um copo de cerveja no mesmo bar em que havia conversado com Maurício naquele fatídico dia. O movimento ainda estava baixo, mas já haviam algumas pessoas bastante bonitas, tanto homens quanto mulheres.

    Apesar disso, nenhuma daquelas mulheres chegava aos pés do puta mulherão que era Lúcia, e lá no fundo, Ana ainda tinha sentimentos por Douglas.

    Assim que avistou a pessoa que esperava, a moça ligou o gravador de seu celular e guardou no bolso da calça.

    Seu antigo amigo, talvez ex-amigo, se sentou à sua mesa.

    Ele nunca tira esse terno?” Pensou Ana.

    -Em que eu posso lhe ser útil? - Perguntou Maurício, com sua típica voz aconchegante e sorriso caloroso.

    Lúcia havia mandado Ana procurar Maurício pra tentar extrair alguma informação dele.

    -O que são esses novos Hasturs? - Os olhos de Ana estavam cheios de lágrimas. Ela queria gritar por que caralhos seu amigo se tornou um assassino em massa, mas conseguiu conter suas emoções o bastante.

    Maurício olhou ao redor do bar, observando tudo com aquele sorriso infantil no rosto.

    -Pouco movimento, não é mesmo? - Disse ele enquanto se servia do copo que o garçom colocava na mesa – Respondendo a sua pergunta, eles são basicamente o que vocês já devem ter percebido: Hasturs com vida.

    -Tá, mas por quê?

    -Faz parte do Jogo Sagrado.

    -Hein? - Estranhou a punk.

    -Tudo será revelado a seu tempo. - Maurício bebeu mais um gole de cerveja – Tem algo a mais que quer saber? - Aposto que está curiosa sobre aquela figura encapuzada no caderno que vocês acharam na faculdade, estou certo?

    O coração de Ana parou de bater por um segundo. “O filho da puta está disposto a revelar o plano. Não é um bom sinal…

    -Aquele é o Rei Amarelo. - Explicou Maurício. - Os antigos necromantes e vampiros da França o cultuavam como um deus, embora ele seja muito mais do que isso.

    -Você disse vampiros?! Isso existe?! - Os olhos de Ana quase saltaram do rosto.

    -Isso não vem ao caso. - Respondeu Maurício, procurando manter a cortesia – Os Hasturs originais, mortos-vivos, foram criados como forma de prestar culto ao Rei. Mas veja você, a arte da morte é bastante imprática, diria até limitada.

    -Por isso os Hasturs vivos…

    -Invenção de Igor e eu! - Maurício soltou um riso alegre – Sabe, eu sinto pena do Douglas. O pai dele foi mais meu pai do que dele próprio.

    -Eu não me surpreendo com Igor matar pessoas, – Falou Ana – mas por que você está participando disso?

    -Tenho meus motivos. - O tom de Maurício havia se tornado levemente melancólico. - Mas elas só morrem se vocês deixarem. Faz parte do Jogo.

    Assim que Maurício falou aquilo, gritos vieram das ruas. Pessoas corriam aterrorizadas, mas eram imediatamente mortas pelo Hastur, que as esmagava e devorava.

    A polícia militar apareceu para combatê-lo, mas foi como tacar pedras em um tanque.

    -Isso ainda não acabou. - Disse Ana, que correu pra enfrentar o monstro.

    -Tirou as palavras da minha boca. - Respondeu Maurício, já sozinho.


*


    O Hastur dessa vez era um enorme gorila com três cabeças; formiga, javali e lagarto.

    Ele estava prestes a devorar uma PM quando foi atingido por disparos de energia, forçando-o a largar a presa.

    -Lúcia, preciso de reforços. - Madriax chamou por um comunicador em seu pulso. - Tô na minha forma azul e não acho que vou dar conta dessa porra sozinha.

    Assim que disse isso, Chevielier e Semreh foram transportados pro local.

    -Marcos e os robôs infelizmente não poderão ajudar. -Declarou Lúcia – Está nas mãos de vocês.

    Uma arma de fogo semelhante a uma uzi se materializou na mão de Chevielier.

    -Foi ideia do Marcos. - Comentou a cientista – Já estou te mandando porque ainda não instalei um botão correspondente na armadura.

    -Entendido. - Respondeu Chevielier.

    -Parece que só eu vou ter que chegar perto daquilo, né? - Observou Semreh- Bom, tanto faz.

    Assim que disse isso, Semreh correu em direção ao monstro.

    Chevielier se posicionou atrás do blindado da Polícia Militar e disparou com sua nova arma, que era muito mais confortável do que a pistola finalizadora.

    Madriax saltou para o telhado do bar aonde se encontrou com Maurício e também abriu fogo.

    Nem as balas nem os pedaços de alma pareceram incomodar o Hastur, que se concentrou em Semreh.

    O guerreiro azul escuro desferiu um tegatana contra o punho do gorila de cabeças erradas. As mãos de ambos se chocaram, mas ficaram presas no meio do caminho, um sem conseguir avançar contra o outro.

    Os tiros pararam.

    Semreh estava começando a perder o embate, então decidiu ativar o fogo frio.

    A dor que ele sentia em seu braço energizado com certeza não era nada perto do que a fera sentiu, tendo seu braço atravessado e partido até a junta do cotovelo.

    O Hastur soltou três sons de dor diferentes com cada uma de suas três cabeças, mas antes que Semreh tivesse tempo para atacar novamente, cada metade do braço do gorila mutante se tornou um novo braço, compartilhando do mesmo cotovelo.

    De novo isso.”, pensou Madriax.

    Com sua pontaria sobre-humana, ela então disparou contra a cabeça de javali do Hastur, quebrando uma das presas.

    Um guincho de porco no abate se sucedeu e o monstro encarou Madriax com a cabeça de lagarto.

    Enquanto a cabeça de javali esticava a língua pra lamber a ferida, a cabeça de formiga tornou a face para outra direção.

    -Ah, merda! - Exclamou Semreh ao ver para onde a formiga olhava.

    Mais uma vez o Hastur foi mais rápido que Semreh e deu um grande salto na direção do caminhão blindado, causando um enorme tremor ao cair e abrindo uma cratera no chão.

    A fera então ergueu o blindado com seus dois braços do mesmo lado e jogou na direção de Madriax.

    A atiradora pulou no chão a tempo de não ser atingida, mas o caminhão simplesmente destruiu toda a parte superior do bar.

    -Puta que pariu. - Comentou Madriax.

    Chevielier tentou disparar mais uma vez com sua metralhadora, mas já havia acabado a munição.

    Ele então correu em direção ao Hastur e saltou em seus ombros, prendendo as pernas no pescoço do meio e socando repetidamente o mais forte que podia.

    Ao mesmo tempo que suas mãos se chocavam contra a cabeça do inimigo, ele também apertava as pernas com toda sua força, se não para sufocar o Hastur então pelo menos pra impedir que se soltasse.

    -Semreh, energize a Madriax pra forma laranja! - Ordenou Chevielier – Vamos precisar do máximo de força bruta pra acabar com esse!

    Assim que o soldado prateado falou isso o monstro conseguiu desprender as pernas de Chevielier de seu pescoço e o jogou contra Semreh, que aproveitou o salto da esquiva pra se aproximar de Madriax e energizá-la.

    No momento em que assumiu a forma laranja, Madriax avançou contra o Hastur e o socou com seus punhos gigantes. Mesmo quando a fera tentava se defender, o soco de Madriax simplesmente furava o bloqueio.

    Isso tá muito lentoPensou Semreh, que se cobriu de fogo azul, esfriando o ambiente, e também partiu pra cima da besta, dessa vez tomando cuidado pra não desferir golpes de corte.

    Semreh parecia uma tempestade de raios azuis atingindo o Hastur com socos e chutes partindo de todas as direções. Se Madriax quebrava a defesa do inimigo, Semreh nem mesmo dava tempo dele se defender.

    Por um momento as cabeças de formiga, javali e lagarto pareceram ser três rostos de Igor, o que fez com que Semreh conjurasse ainda mais fogo azul pra aniquilar o oponente.

    No entanto aquilo foi demais para Semreh, que caiu no chão destransformado em Douglas; a pressão do fogo azul fez com que todo o seu corpo sentisse como se tivesse sido esmagado pelo peso do mar profundo.

    O Hastur já havia erguido o braço para dar o golpe final quando foi atingido por um tiro e explodiu em fumaça roxa: Chevielier disparou sua pistola.

    -Douglas! - Bradou Ana após se destransformar, correndo em direção ao amigo.

    -tudo, *agh*, bem. - Douglas tentou tranquilizá-la – Só preciso de repouso.



*


    Já era noite, e Douglas meditava em seu dormitório. A dor física já havia diminuído bastante, mas a dor de sua alma custava a passar. Conforme recitava o mantra, Douglas acabou se lembrando das coisas que aconteceram no dia; as lutas que travou e as conversas com seus amigos.

    O rancor que Douglas sentia de seu próprio pai o machucava muito, mas também era sua principal motivação pra seguir adiante.

    Se Douglas conseguisse acabar com seu pai de uma vez por todas, fazer ele pagar por tudo que já fez… talvez assim ele poderia finalmente ser livre pra começar uma nova página em sua vida…

    Então começou.

    A mão de Douglas foi imediatamente apalpar o seu peito, que parecia explodir de dor.

    Um frio intenso se espalhou pelo seu corpo a partir do coração, e Douglas caiu no piso.

    Chamas roxas começaram a envolver o rapaz, que gritava de dor.

    Lúcia foi correndo até o dormitório de Douglas, e foi pega de surpresa pelo que encontrou lá.

    De pé, no meio do quarto, estava Semreh.

    Mas era diferente. As partes do traje que antes eram azuis se tornaram roxas, e chamas da mesma cor adornavam o corpo do guerreiro, sem parecer lhe fazer mal.

    Lúcia ficou tão espantada com aquela mudança que nem deu atenção ao odioso frio que sentia.

    A busca de Semreh chegou ao fim:

    Ele obteve o poder pra conseguir sua vingança.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cidade Amarela, capítulo 0a - Douglas

Cidade Amarela - Capítulo 15

Cidade Amarela, Capítulo 14