Cidade Amarela, capítulo 5

 

    -Encontrou alguma coisa? - Perguntou Douglas, mais uma vez dentro da máquina de ressonância.

    -Ah, com certeza. - Respondeu Lúcia, observando a tela do computador. - A meditação fez uma tremenda mudança na sua alma.

    -Tinha uma coisa que eu queria saber. - Douglas encarava o teto branco do interior da máquina.

    -Eu não sou lésbica.

    -Hein? Ah não, não. Eu queria saber como é que você consegue analisar minha alma com um computador.

    -Ah sim. - Lúcia digitava enquanto conversava. -Eu acho que já disse antes, minha família possui vínculos com magia negra.

    -Eu pensei que vocês fossem budistas.

    -Também. É uma coisa que vem desde a Segunda Guerra Mundial.

    -Interessante.

    -Acabei. - Lúcia apertou a última tecla, ejetando Douglas de dentro da máquina.

    -O que tem de diferente? - Perguntou ele ao se aproximar de Lúcia, sem entender as imagens na tela de seu computador.

    -Como posso dizer… A sua alma criou uma espécie de conexão com um reino “inferior”. Um inferno de gelo, pra ser mais exata.

    Douglas deu uma risadinha.

    -Meu pai sempre se achou um enviado celestial, faz sentido eu acabar me aliando ao Inferno.

    -Eu pensei num nome pra essa sua nova transformação: Semreh Cocytus. O que acha?

    -Gostei. Bastante apropriado.




*



    -Tem certeza de que não quer que eu te teletransporte? - Perguntou Lúcia.

    -Tenho. - Douglas estava decidido. - Quero resolver isso com o mínimo de ajuda possível. - O rapaz olhava fixamente para a rua em movimento na porta de entrada da Kegareshi. -Também é bom deixar essa raiva queimando dentro de mim, vou precisar desse “combustível”.

    -Você que sabe. -Ela ajeitou o cabelo. - Nós ainda estaremos aqui caso aconteça algo. Que a bênção de Izanami paire sobre você.

    -Obrigado. - Douglas sorriu e então se misturou às outras pessoas que andavam pela calçada.

    Enquanto andava, Douglas se lembrou de quando sua casa foi atacada por aquele ouriço-do-mar voador: Aquilo o motivou a caçar o pai, mas algo aconteceu que fez com que Ana tivesse que resgatá-lo.

    O que diabos aconteceu mesmo?” Ele não conseguia se lembrar; teria que perguntar pra Ana na próxima vez que se encontrassem.

    Naquele momento, ele tinha coisas mais importantes pra se preocupar.


***

    -Essa já é a sua segunda garrafa? - Indignou-se Igor com sua voz de trovão – Se você fosse meu filho…

    -Mas não sou. - Maurício engoliu o resto de vinho que havia na taça. - De qualquer forma, não precisarei dessa muleta emocional quando você vencer o Jogo Sagrado.

    -Acho bom.

    Maurício estava recostado em uma poltrona na sala de estar do triplex que dividia com Igor, seu mentor e, por que não dizer, “comparsa”. Enquanto saboreava mais uma taça de vinho, o jovem lia com bastante atenção uma revista científica.

    -O que está lendo? - Igor perguntou, inquisitivo. Igor era um senhor de meia-idade, bastante alto e corpulento. Sua grande barba, cabeça raspada para disfarçar a calvície e voz imponente o tornavam uma figura intimidadora.

    Mas não para Maurício.

    -Um artigo da nossa querida Lúcia Nakajima! - O rapaz de cabelo crespo estava bem mais alegre que de costume, talvez por causa da bebida. -É evidente que ela omitiu qualquer informação sobre conceitos que violem o método científico, mas não faz mal: O trabalho será muito útil para nós durante a próxima etapa do Jogo.

    -Ótimo. Estarei no último andar se precisar de algo.





    Assim que terminou de ler a revista, a porta do apartamento foi vítima de bruscas batidas.

    -Só pode ser ele! - Maurício soltou um largo sorriso e foi atender. -Douglas! É sempre tão bom receber uma visita sua!

    -Onde é que ele tá?! - Douglas já chegou empurrando Maurício pro lado.

    -Está lá em cima, mas antes disso você não quer… -Antes que Maurício terminasse, Douglas disparou escada acima, e ao chegar ao último andar, chutou a porta do escritório de Igor; o baque do chute ecoou por todo o apartamento.

    -Eis que o bastardo retorna. - Comentou Igor sem tirar os olhos de seu caderno de anotações.

    Aquele descaso deixou Douglas muito mais puto do que já estava, então resolveu fazer algo que não pudesse ser ignorado: Evocando toda a energia de sua alma, Douglas iniciou o processo de transmutação em Semreh Cocytus, fazendo a temperatura dos três andares cair a níveis muito mais intensos do que o habitual.

    Igor esperou seu filho terminar a transformação no guerreiro negro e roxo para então se levantar da cadeira.

    -É energia infernal que eu sinto emanando de sua alma? -Igor encarava Semreh sem se intimidar. - Bem se vê que você não tem o meu sangue. Cria de uma vagabunda, eu devia ter te punido mais.

    A bomba estourou.

    Semreh Cocytus avançou furiosamente com um tegatana contra Igor, mas antes que pudesse ser decapitado, o senhor agarrou o pulso de Semreh e o jogou porta afora, mas assim que caiu no corredor o heroi imediatamente recuperou a compostura e avançou novamente.

    Dessa vez Semreh tentou agarrar o pulso de Igor, mas assim que o fez, Igor simplesmente deu uma volta com o braço e, quando a palma da mão esteve diante do rosto de Cocytus, ela emitiu um brilho tão intenso que cegou-o por alguns instantes, tempo o suficiente para Igor dar um tegatana em sua nuca e derrubá-lo, então agarrou seus braços e forçou seu joelho sobre o pescoço de seu suposto filho, sufocando-o.

    -Você nunca vai conseguir me vencer. -Disse Igor. -Seus sentimentos ignóbeis cegam sua mente, e essa nova forma pode até ser mais forte do que a que eu te presenteei, mas ela corta sua ligação com o fluxo do universo; não que eu precise disso pra prever seus movimentos, mas foi bom eu ter te atraído naquela outra ocasião para criar um vínculo específico entre nós dois. É melhor prevenir do que remediar.

    Semreh estava ficando sem ar. Ele tentou conjurar fogo místico, mas nada aconteceu.

    -Tentando se fortalecer? -Provocou Igor. - Esquece. Posso sentir que essa nova forma não tem a capacidade de ficar mais forte do que já é.

    Ainda assim, algo aconteceu: Fogo roxo se ascendeu nos braços de Semreh, energizando as mãos de Igor, que explodiram.

    Dessa vez Igor é quem foi lançado até o corredor, o impacto chegando a rachar a parede em que bateu.

    Com dificuldade, Igor se ergueu. Suas mãos foram completamente destruídas pela explosão, expondo o toco dos ossos.

    Partes de seu terno também foram queimadas, e seu corpo se abriu em várias feridas.

    -Moleque desgraçado… - Praguejou Igor, que de alguma maneira fez com que suas feridas se curassem sozinhas, além de fazer nascer um novo par de mãos.

    Furioso, Semreh se jogou dando uma ombrada no estômago de Igor. O guerreiro preto e roxo aproveitou a ofegação de seu pai para tentar decapitá-lo com um tegatana, mas Igor mostrou-lhe a palma da mão mais uma vez, para mais uma vez cegar seu filho com a luz emitida por ela.

    Igor então agarrou o braço de Semreh, mas antes que tivesse tempo de concluir o golpe, o jovem girou o braço para inverter os papeis e então jogou Igor em direção à escada.

    Igor porém se segurou em Semreh, e ambos rolaram escada abaixo até o segundo andar.

    Semreh imediatamente se levantou e começou a pisotear o pescoço de Igor.

    Uma onda de prazer se apoderou do corpo de Semreh. Nem quando transava com com Ana ele sentia um orgasmo tão intenso; todos aqueles anos sendo torturado pelos motivos mais idiotas, todo o desprezo que recebia do próprio pai sem o menor fundamento… Semreh era quase grato pelo seu pai poder se regenerar, pois assim poderia finalmente retribuir toda a dor que recebeu em sua juventude antes de matá-lo.

    Cada pisada liberava uma torrente de dopamina em Semreh, o que o motivava a pisar ainda mais forte.

    O piso do andar não foi tão resistente quanto Igor no entanto, e quebrou.

    Os dois combatentes caíram no térreo bem na frente de Maurício, que continuou bebendo vinho e lendo como se nada tivesse acontecido.

    Igor e Semreh Cocytus imediatamente se ergueram para continuar a luta, mas assim que deu um passo em direção ao seu pai, Semreh foi tomado por uma dor visceral percorrendo todo seu corpo; a sensação era como se seu estômago tivesse estourado e o suco gástrico se espalhado por todo o organismo.

    Caiu de joelhos não mais como Semreh, mas como Douglas.


    Igor deu um pontapé no estômago de Douglas, fazendo-o cair completamente, se contorcendo de dor. Feito isso, ele agarrou Douglas pelo colarinho e o jogou pra fora de casa.

    -Maurício. - Chamou Igor, após “jogar o lixo fora”.

    -Sim? -Perguntou o outro jovem, atencioso.

    -A nova etapa começou.

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