Cidade Amarela, capítulo 6

 

    -E aí, cara. Como você tá? - Perguntou Alexandre ao entrar no quarto do hospital.

    -Me sinto um pouco melhor a cada dia. - Faziam nove dias que Douglas estava internado no hospital tomando soro ansiolítico na veia. -Me falaram que vou ter alta hoje.

    -Caramba, que ótimo! - O legionário se sentou num banquinho próximo a cama de Douglas. -O que pretende fazer quando sair daqui?

    -Nada muito diferente do que já fiz. - Douglas apertou o botão do controle do ar-condicionado para aumentar a temperatura.

    -Mas você é teimoso, hein? - O tom de Alex era metade reprimenda e metade brincadeira. - Ainda não entrou na sua cabeça que esse ódio tá te destruindo, literalmente inclusive? Tinha tanto cortisol no seu corpo que você quase pegou diabetes antes daquele formiga do Marcos!

    Risadas se misturaram com tosse na boca de Douglas.

    -Que outra opção a gente tem, cara? Vamos deixar o meu pai continuar acabando com vidas inocentes, por algum motivo que com certeza é muito merda? - Douglas tossiu antes de continuar – Isso aqui é diferente do que fizeram com você na Legião Estrangeira.

    Alexandre encarava o chão, refletindo sobre as palavras de Douglas.

    -Pode ser que você esteja certo. -Respondeu – Vamos torcer pra que os “contatos” da Lúcia consigam traduzir logo aquele caderno que a gente achou na Kumã. Conhecer o inimigo é importante numa guerra.


*


    -Com licença. - Era o médico, acompanhado de uma enfermeira, vindo dar alta.

    Após receber a documentação e a prescrição médica, Douglas foi pra for a do hospital, aonde Ana o esperava com sua scooter.

    -Eu fiquei tão preocupada – Ela abraçou o rapaz com toda a sua força. Lágrimas escorriam de seus olhos.

    -Bom, eu ainda tenho que fazer as minhas compras do mês. - Comentou Alexandre após eles se soltarem – A gente se vê.

    Depois da despedida, Douglas subiu na garupa de Ana e se segurou nas alças da moto.

    Ana não pôde deixar de sentir uma leve decepção por Douglas não ter colocado as mãos em volta da sua cintura, como ele costumava fazer na época em que se pegavam.

    Deu a partida.

    -Tem certeza de que quer ir direto pra Kegareshi? - Perguntou Ana, dessa vez respeitando o trânsito – A gente podia parar em algum lugar, meu próximo aluno só vai ter aula daqui a duas horas.

    -Não, valeu. Quero ver com a Lúcia se os “contatos” da família dela já conseguiram traduzir o caderno.

    -DÁ A SETA, Ô FILHO DA PUTA! - Berrou Ana pra um motorista, provavelmente de aplicativo. - Acho que vou ficar com ela também.

    Ana não escolheu bem as palavras.

    -Tá afim dela, é? - Brincou Douglas.

    -Quem sabe. - Ana estava corada.


*

    Após desempacotar e guardar suas compras, Alexandre pegou uma foto que guardava em sua casa: Ele junto de seus companheiros de batalhão no último dia do contrato. Aquela foto era preciosa demais pra ficar guardada em mídia digital; ele precisava emoldurar.

    Apesar das dificuldades, aquela foi uma fase bastante frutífera na vida de Alex: Graças ao tempo de serviço na Legião ele ficou mais forte, física e psicologicamente. Por mais que odiasse admitir, executar desertores de fato endureceu seus nervos.

    Mas Douglas definitivamente não necessitava desse tipo de experiência.

    *ding dong*

    Alexandre foi atender a porta.

    -Boa tarde. Você é o Alexandre, correto? Um dos agentes da Kegareshi.

    Pele branca, cabelo crespo, terno em situação imprópria e super bem educado.

    -Sim. -Respondeu Alexandre, seco. - E você é o Maurício.

    O outro homem riu. Era uma risada alegre, infantil; não parecia haver um pingo de malícia em sua voz.

    -Bom saber que apresentação são desnecessárias.

    -O que você quer? - Alexandre já estava perdendo a paciência.

    -Muito simples: Eu vim aqui te desafiar para um duelo. Um combate um contra um.

    -E se eu não aceitar? - Alexandre tinha certeza de que aquilo era parte do tal “Jogo Sagrado”.

    -Tenho homúnculos espalhados por toda a Ponta de Faca. -Respondeu Maurício, sorridente. - Cada um deles carrega frascos contendo Hasturs. Um comando meu e a cidade se torna uma pintura de Bosch.

    -É um blefe.

    -Mesmo se for, o que me impede de voltar pra casa e de fato colocar isso em prática?

    Alexandre grunhiu.

    -Lúcia – Alex chamou pelo comunicador – Preciso da Chevielier. Surgiu um problema aqui, mas nada que eu não consiga resolver sozinho.

    A armadura cobriu o corpo do soldado.

    -Meu turno? - Brincou Maurício – Pois muito bem.

    O corpo de Maurício começou um processo de transmutação; diferente do de Semreh e Madriax, aquilo não parecia partir da alma de Maurício, mas de seu próprio corpo físico: Pelos brancos nasceram em suas pernas, que ganharam um aspecto felino. Asas brancas brotaram de suas costas, assim como penas cobriram seu tronco. Seus braços adquiriram o aspecto de patas de águia e sua cabeça se tornou uma cabeça desse animal; Maurício se tornou um grifo humanoide.

    Chevielier ficou completamente embasbacado com aquela transformação, mas assim que o grifo avançou com sua garra de águia, o paladino moderno instintivamente se lembrou de seu treinamento e bloqueou o arranhão usando seu próprio braço como escudo, e então contra-atacou com um soco no peito do inimigo, impulsionando Maurício alguns metros pra trás.

    Ao socar o grifo branco, Chevielier teve a impressão de que o interior de Maurício era robótico, ou pelo menos os ossos eram.

    Mãos nuas não vão servir muito”, pensou o soldado.

    Pressionando o botão apropriado de sua armadura, Chevielier “conjurou” seu facão e avançou contra Maurício com um corte diagonal.

    O grifo agarrou a lâmina com uma das “mãos”, e embora o corte em si não o tivesse ferido seriamente, a eletricidade do facão percorreu seu esqueleto metálico.

    Um guincho de dor escapou do bico de Maurício, e Chevielier aproveitou pra dar um giro e cortar o inimigo no peito, dando um choque no tórax.

    Maurício bateu as asas pra recuar. Ele olhou em volta e agarrou um carro estacionado próximo a ele, ergueu vôo e arremessou o carro em Chevielier.

    Chevielier se jogou pro lado e imediatamente “conjurou” sua uzi, disparando freneticamente contra o inimigo alado, que fazia piruetas no ar pra desviar das balas.

    O legionário soltou o gatilho quando Maurício ficou mais próximo do chão: Ele não queria correr o risco de atirar num civil por acidente.

    O grifo aproveitou esse momento e mergulhou contra Chevielier, atacando-o com seus pés de leão.

    Chevielier bloqueava sua cabeça com os braços, mas a armadura já dava sinais de que não resistiria às patadas.

    Percebendo isso, o soldado agarrou o tornozelo de Maurício, mas antes que conseguisse fazer qualquer outra coisa, o inimigo voou até uma altura considerável e, ao dar cambalhotas no ar a toda velocidade, fez com que Chevielier se soltasse, abrindo uma cratera ao cair no chão.

    Maurício então se propulsionou pra baixo, caindo com os pés em cima de Chevielier e quebrando a armadura na região do estômago.

    O portador ainda estava consciente.

    -Até que durou mais do que eu esperava – Comentou Maurício, se transformando de volta em humano – Lúcia realmente fez um ótimo trabalho com essa armadura.

    O rapaz de terno pegou uma flor de ipê do chão e caminhou para longe, admirando seu perfume como se nada tivesse acontecido.


*


    Lúcia: Como ele está?

    Marcos: O médico disse que ele teve uma hemorragia leve, mas nada permanente.

    Lúcia: Entendo. Diga a ele que eu desejei melhoras.


    Lúcia guardou o celular e ficou encarando as cicatrizes em seu pulso. Não importa quantas vezes ela consultasse os deuses proibidos, a resposta era quase sempre a mesma; a única mudança, que havia surgido recentemente, era algo que poderia ser interpretado como a importância de Douglas para evitar a catástrofe.

    A campainha tocou.

    -Moleques. - Resmungou Lúcia ao atender e não encontrar ninguém, mas então ela notou algo no chão.

    Era uma revista científica de Medicina. Aquela estava longe de ser a área de Lúcia, mas algo chamou sua atenção: Um artigo assinado com os nomes “Igor” e “Maurício”.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cidade Amarela, capítulo 0a - Douglas

Cidade Amarela - Capítulo 15

Cidade Amarela, Capítulo 14